Datena simboliza o que a comunicação pública deve rejeitar

A notícia da possível contratação de José Luiz Datena para integrar o quadro de comunicadores da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) acendeu um alerta grave entre entidades, movimentos e especialistas que, há décadas, lutam pela democratização da comunicação no país. Não se trata de um debate sobre gostos pessoais, preferências editoriais ou disputas corporativas. O que está em jogo é algo muito maior: a integridade do projeto de comunicação pública previsto em lei, construído com participação social e voltado à garantia do direito humano à comunicação; direito este que sustenta e reforça todos os demais direitos.

O Intervozes, assim como tantas organizações e pesquisadores, tem longa trajetória de enfrentamento aos programas policialescos que, sob a aparência de jornalismo, criminalizam a pobreza, reforçam preconceitos contra negros, periféricos e LGBTQIAP+ e violam sistematicamente direitos humanos. A atuação profissional de Datena, historicamente associada a esse modelo comunicacional, é incompatível com os princípios que regem a EBC. 

A legislação que criou a empresa; a Lei 11.652/2008, estabelece que a comunicação pública deve observar o respeito aos valores éticos e sociais, proibir discriminações e atuar com absoluta autonomia editorial em relação ao governo federal. Não é apenas uma questão de coerência editorial: é uma exigência legal e institucional.

Violação de princípios e desrespeito à participação social

O alerta emitido pelo Comitê Editorial e de Programação (Comep) e pelo Comitê de Participação Social, Diversidade e Inclusão (CPADI), que integram o Sistema Nacional de Participação Social da Comunicação Pública, expressa espanto e indignação diante da notícia. Esses comitês existem justamente para assegurar que a programação da EBC esteja comprometida com a pluralidade, com a cidadania e com o interesse público.

Além da incompatibilidade entre o histórico profissional do apresentador e os princípios do sistema público de radiodifusão, chama atenção o fato de a nova contratação ter sido anunciada pela própria Presidência da República, com fotografia do presidente Lula ao lado do comunicador. Tal gesto fere diretamente o inciso VIII do artigo 2º da Lei 11.652/2008, que garante autonomia de programação da EBC em relação ao governo federal. Uma comunicação pública verdadeiramente democrática não pode ser confundida com comunicação governamental.

É preciso lembrar que o Decreto 12.005/2024 reforçou a centralidade da participação social na política editorial da EBC, atribuindo ao Comep o papel de acompanhar o cumprimento dos princípios do sistema público de radiodifusão e ao CPADI a missão de zelar pelo respeito à diversidade, à cidadania e às diretrizes de inclusão. Ignorar suas recomendações significa minar a arquitetura democrática que sustenta a comunicação pública.

Datena simboliza o policialesco

Pesquisas da ANDI – Comunicação e Direitos, Intervozes e Artigo 19 monitoraram 28 programas policialescos em dez capitais brasileiras e registraram 4.500 violações de direitos humanos em apenas um mês. Só o Brasil Urgente de São Paulo, apresentado por Datena, exibiu 148 trechos violatórios, totalizando 345 violações. Quando consideradas as quatro capitais onde o programa era transmitido (São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Salvador), o número chega a 565 violações, o maior entre todos os programas analisados.

O histórico é tão grave que a Bandeirantes foi uma das raríssimas emissoras de TV punidas por desrespeitar direitos humanos, em razão de falas de Datena. Em 2010, o apresentador passou quase 50 minutos associando ateus a criminosos “do mal”, discurso discriminatório que levou o Ministério Público Federal a exigir retratação: em 2015, após acordo judicial, a emissora teve de exibir 72 vídeos educativos afirmando que o Estado brasileiro é laico; sob pena de multa diária de R$ 10 mil.

Mesmo assim, as sanções são irrisórias frente ao faturamento das emissoras. O teto atual de multas do Ministério das Comunicações é de R$ 146 mil, valor muito inferior aos R$ 315 mil cobrados pela Band por 30 segundos de publicidade em 2019. Esse conjunto de evidências mostra que a atuação de Datena não é exceção pontual: trata-se de um padrão reiterado de violações, incompatível com a missão, com a ética e com a legalidade da comunicação pública.

O que está em risco

A comunicação pública brasileira não nasceu por acaso. Ela foi fruto de lutas históricas de entidades, pesquisadores, movimentos sociais e parlamentares comprometidos com a democratização dos meios de comunicação. Seu objetivo é oferecer ao país um sistema que não se submeta a interesses de mercado, governos ou grupos religiosos e que represente a pluralidade da sociedade brasileira.

Programas policialescos, ao contrário, representam o extremo oposto: transformam a violência em espetáculo, reforçam estigmas estruturais, instrumentalizam o sofrimento alheio e frequentemente operam como braço midiático de políticas de segurança baseadas no encarceramento e na repressão seletiva. Tudo isso flertando diretamente com o racismo.

Permitir que esse modelo ingresse na EBC significa não apenas trair a missão da comunicação pública, mas também abandonar o compromisso ético que sustenta qualquer projeto de sociedade democrática.

A defesa da comunicação como direito humano; bandeira histórica do Intervozes e de inúmeras entidades, está diretamente ligada à defesa da vida, da dignidade, da igualdade racial, de gênero e territorial. Não há comunicação pública possível quando vozes vulnerabilizadas são retratadas como inimigas; quando o sofrimento vira mercadoria; quando o jornalismo se converte em tribunal midiático.

Um apelo por responsabilidade e por coerência

Diante do quadro, os Comitês pediram esclarecimentos formais sobre a aderência da contratação aos princípios da comunicação pública e solicitaram sua reconsideração da contratação. O recado é simples e contundente: a EBC não pode se afastar de sua missão nem se aproximar de práticas que historicamente violam direitos humanos.

O Brasil tem uma comunidade vasta de comunicadoras e comunicadores éticos, competentes e comprometidos com o interesse público. A EBC, se quiser de fato ser referência de diversidade, pluralidade e democracia, precisa fortalecer essa perspectiva; e não caminhar na direção oposta.

A comunicação pública é um patrimônio da sociedade brasileira. Proteger sua integridade significa proteger a democracia. E isso não pode ser negociado.

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