Um vale de lágrimas
É preciso saber como chegamos nesse fundo de poço para encontrar maneiras de sair dele.
Por Luis Felipe Miguel*, em seu blog
Este texto inaugura uma série de cinco, dedicada a entender porque chegamos aonde chegamos: emparedados pela direita, sonhando apenas com evitar o pior. Nos próximos, vou falar do possibilismo paralisante da esquerda, do avanço do individualismo e da dissolução da identidade de classe, do apetite insaciável do capital e da fragmentação do mundo social.
O futuro parece sombrio. Vivemos em um tempo em que é difícil não ser pessimista.
O regime de democracia concorrencial que, bem ou mal (ou melhor, mais mal do que bem), dava ao povo alguns instrumentos para controlar o apetite das classes dominantes, esse foi para o beleléu. O obscurantismo mais exacerbado ganhou tamanha tração que toda a energia é gasta no esforço de contê-lo provisoriamente, nada mais que isso. As forças que deveriam se opor às trevas estão carentes de projeto e pouco têm a propor além de improváveis retornos ao passado. O planeta convive com uma sentença de morte, mas parece que preferimos ignorá-la em vez de agir para que não se concretize. Tudo aquilo que o pensamento crítico falou sobre os mecanismos de manipulação ideológica e acomodação resignada no sistema é fichinha diante do processo de atomização e de imbecilização colocado em marcha pelas plataformas sociodigitais. Individualismo obtuso, machismo ultrajante, racismo sem disfarces, negação da ciência, apego a crendices, tudo aquilo que parecia que podíamos superar voltou com força total – parece que nunca avançamos nada, havia apenas pudor de falar certas coisas em público. A inteligência artificial lança a promessa de aliviar a humanidade do fardo de usar a própria cabeça, completando o quadro.
Gramsci gostava de citar a frase de Romain Rolland (escritor francês, ganhador do Nobel de Literatura, hoje quase esquecido), sobre a necessidade de combinar o pessimismo da razão com o otimismo da vontade. Acho bacana. Mas a verdade é que o trabalho da vontade anda bem difícil.
E, pulando de um pensador a outro, Millôr Fernandes escreveu que é melhor ser pessimista do que otimista; afinal, o pessimista fica feliz quando acerta e quando erra. É, como de costume, uma boutade inspirada. Mas não se aplica quando o pessimismo se liga à nossa própria sobrevivência.
Além de tudo, estamos cansados. Sempre lembro da tirinha da Mafalda, em que Felipe lê a inscrição no pedestal de uma estátua, descrevendo o homenageado como “lutador incansável”. Mas, observa sensatamente o meu xará, difícil mesmo é “estar cansado e continuar lutando”.
Faz mais de dez anos desde que evoquei esta tirinha pela primeira vez em um texto. Desde lá (estávamos lutando contra o golpe para derrubar Dilma Rousseff, que acabaria vitorioso), só piorou a sensação de uma fadiga enorme, diante de batalhas em que a única vitória que se almeja é não recuar ainda mais.
Comemoramos a condenação de Bolsonaro, com razão – até porque precisamos comemorar sempre que encontramos um motivo. Mas sabemos que é pouco, que a extrema-direita continua assanhada, que a esquerda continua sob cerco, que mesmo colocar o “imbrochável” e seus cúmplices na cadeia não nos livra do risco do retrocesso: e que nossa prioridade continua a ser apenas não descer mais fundo no poço.
Preciso recordar para mim mesmo, permanentemente, que o pessimismo é uma armadilha ideológica, que serve para nos paralisar, insinuando que a resistência é vã e a mudança, impossível.
Afinal, o tempo não pára (sim, com acento diferencial mesmo). Só pára se nós pararmos.
E, de fato, é preciso resguardar uma certa inocência para pensar em mudar o mundo, sem se render ao cinismo sempre dominante. Lembro do Minimanual do guerrilheiro urbano, de Carlos Marighella, descrevendo o militante como uma espécie de super-herói: ágil, dotado de iniciativa, flexível, “resistente à fadiga, fome, chuva e calor”, dotado de paciência ilimitada, mestre dos disfarces e dos esconderijos, exímio no manejo de armas brancas e de fogo e também de explosivos, versado em artes marciais, experto em mecânica, telefonia, eletricidade, química, medicina, farmacologia e outros ofícios, capaz de caçar, de pescar, de pilotar todo tipo de veículos, poliglota… É uma relação quase infantil, mas que diz que, sim, embora a realidade se mostre tão adversa, nós temos como buscar em nós mesmos os recursos para mudá-la.

Imagem: Artista anônimo, Missal de Raoul du Fou (séc. XV)
O primeiro passo para combater o pessimismo é buscar um diagnóstico de como chegamos à situação em que nos encontramos – e chegamos nela em prazo bastante curto, aliás. Há duas ou três décadas, acreditava-se que, com todos os seus limites, a democracia concorrencial era uma base estabelecida, a partir da qual poderíamos tentar avançar para sistemas políticos mais inclusivos. A internet era louvada por seu potencial de democratização do conhecimento e do debate público. Imaginava-se que o avanço tecnológico poderia ser direcionado para libertar a humanidade de uma parte do fardo do trabalho, ampliando a liberdade de todos. A crise ambiental já fora detectada, mas sem a urgência que se percebeu depois, e havia a esperança de que um crescimento perceptível da consciência sobre o problema permitiria que se produzissem as mudanças de rota necessárias. Estávamos carentes de utopias, mas pelo menos parecia que teríamos um momento de relativa estabilidade enquanto as construíamos. No Brasil, a lenta e imperfeita construção democrática projetava um regime de competição política relativamente civilizada e, finalmente, a produção de um consenso social mínimo para garantir o combate à miséria no país.
Tudo isso foi por água abaixo. Como chegamos até aqui? É o que precisamos entender.
De um diagnóstico, claro, não sai automaticamente nenhuma solução. Mas sem ele não temos nem como pensar em qualquer solução.
Nos quatro próximos textos, vou discutir alguns dos percursos que nos trouxeram até a presente situação, com foco especial no Brasil. Sem trazer respostas, mas com a esperança de que possamos vir a encontrá-las.
*Luis Felipe Miguel é professor de Ciência Política da Universidade de Brasília. Coodenador do Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê).
Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
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