Faleceu, hoje, um dos maiores músicos da história da música brasileira: Hermeto Paschoal. Abaixo, transcrevo coluna que escrevi sobre ele, na Folha de S. Paulo:
Na MPB de primeiro nível existe a música do grande público, aquela entoada pelos “canários”, os cantores. Depois, a música sofisticada dos instrumentistas, violonistas, pianistas, acordeonistas, flautistas, saxofonistas, do amplo universo da música instrumental brasileira. E existe a música que transcende, que, sem perder as raízes brasileiras, vai flertar com o jazz, com a música erudita e/ou experimental.
Dos anos 70 em diante, dois gênios se igualam nesse campo do semi-erudito e experimental. Um, o maestro Egberto Gismonti, sobre quem escreverei em outra oportunidade. Outro, o multiinstrumentista Hermeto Pascoal, o “Bruxo”.
Conheci Hermeto em 1970, em um festival em Poços de Caldas, no qual ele compareceu integrando o respeitabilíssimo “Trio da Rhodia”, grupo formado pelo publicitário Lívio Rangan para os desfiles da companhia. Era Hermeto, o fantástico guitarrista Lanny Gordon e outro notável guitarrista, o “Alemão”, acompanhando a cantora Maricene Costa, que fazia sucesso na noite paulistana.
A apresentação foi um brilho, o resultado, um vexame. Um júri formado por cidadãos locais decidiu valorizar a prata da casa e classificou a música da Maria, garçonete do Bachianinha -o inolvidável “Samba do Bambolê”-, em detrimento da composição de Alemão e do grande Vitor Martins.
Foi um vexame completo, que empanou o brilho do Festival, como se dizia na época, mas valeu pelo que ouvimos nos bastidores: Hermeto na flauta e Lanny na guitarra improvisando em torno de temas de choro.
Hermeto já era uma lenda desde 1967, quando formou o “Quarteto Novo”, com Airto Moreira, que se transformou no maior ritmista brasileira nos EUA, e os guitarristas Heraldo do Monte e Téo de Barros, dois craques.
Depois, cada um foi para um lado. Airto seguiu para os Estados Unidos e, tempos depois, convidou Hermeto para acompanhá-lo. Heraldo recusou e preferiu continuar morando na Freguesia do Ó. Lá, Hermeto gravou o seu primeiro disco solo e voltou consagrado pelo fato de ter participado e feito arranjos para o maior nome do jazz da época, Miles Davis.
No Brasil, foi morar em um pequeno sobrado do bairro do Ipiranga, em São Paulo, e montou um conjunto instrumental fantástico, do qual faziam parte Lanny e Macumbinha -um violonista talentoso que morreu cedo.
A casa era um pandemônio musical e a senhora do Hermeto, com uma paciência de Jó, ficava servindo cafezinho. Ela era filha do grande bandolinista Luperce Miranda. Dos experimentos resultou “A Música Livre de Hermeto Pascoal”, de 1973.
Em meados dos anos 70, quando o Tropicalismo esgotara seu potencial criador, teve início uma fase de puro experimentalismo, na qual muitos “canários” tinham intenções revolucionárias, mas parcos conhecimentos musicais. É nesse período que Hermeto se projeta com suas excentricidades calcadas em sólido conhecimento harmônico e uma incrível versatilidade no domínio dos mais diversos instrumentos musicais. Foi um dos revolucionadores do choro nos anos 70, com seu “Bebê”, além de uma quantidade incrível de composições do melhor naipe, muitas delas passando a integrar o repertório de sinfônicas.
Por ocasião de sua volta ao Brasil, a gravadora “Marcus Pereira” lançou um LP com um cantor da noite. Fui incumbido pelo crítico de música da “Veja”, Tárik de Souza, de fazer uma reportagem sobre o disco. Levei para casa, ouvi, e era um horror. Avisei o Tárik -que não havia ouvido o disco- e ele me acusou de preconceituoso. Afinal, além do selo consagrado, o disco tinha Hermeto no acompanhamento.
Disposto a colocar tudo em pratos limpos, fui atrás de Hermeto, que tocava no “Stardust”, boate famosa da época, no Largo do Arouche, cujo dono era o pai de Lanny Gordon. Perguntei sobre o disco e ele negou peremptoriamente ter participado da gravação. Negou com tanta ênfase que falei que ia sair dali, ir até meu carro e pegar o disco com seu nome no expediente. Aí ele me chamou de lado e pediu, súplice: “Tá bom, gravei, mas era porque estava duro! O amigo podia fazer o favor de me tirar dessa?”.