Por Jordan Michel-Muniz*, especial para o Viomundo
O Nepal queima, o Brasil não.
Lá reina o caos, aqui evitamos que se propagasse.
Brasil não é Nepal, mas quase foi…
Uma insólita sucessão de fatores derrubou o governo do Nepal e incendiou o país.
No início da semana (08/09/2025), a geração Z (nascidos de 1997 a 2012) saiu às ruas nepalesas em defesa das redes sociais, nas quais circulavam discursos de ódio atacando o governo por corrupção – a conhecida fórmula golpista.
O que isto tem a ver conosco? Quem sabe apontar no mapa o Nepal?
E de que importa, quando Trump nos ameaça com força militar para intimidar o STF, que condenou a gangue fascista a mofar na cadeia – como merece – pela tentativa de golpe de Estado?
Por que passar do golpe daqui para o de lá?
A razão é que ao comparar fatos vemos que o Brasil de 2023 quase foi o Nepal de 2025. Escapamos por pouco, daí a gravidade do golpismo julgado em Brasília.
Quanto ao Nepal, o improvável acontece, apronta surpresas. Mas se vários incidentes improváveis coincidem, e direcionam mudança geopolítica, soa o alerta da artificialidade do acaso.
Foi reação espontânea das massas populares, uma revolta nas redes? Que massas, se só havia grupos pequenos e médios?
Ou brotou aquilo que o interesse forâneo semeou, uma revolução colorida?
É cedo para resposta definitiva, porém há indícios de golpe planejado. A suspeita vem da sequência de eventos, que reduzo ao âmbito local e, depois, recuando um mês, amplio ao global.
A turbulência no Nepal vem do século passado. Em 2006 findou uma década de guerra civil, seguida pela abolição da monarquia, mas a instabilidade política persistiu.
O conflito atual surgiu de lei que obrigou redes sociais a se registrarem para operar. A chinesa TikTok e a japonesa Viber acataram. Meta (Whatsapp, Instagram, Facebook), X e Google (Youtube) recusaram.
A semelhança do confronto da Justiça brasileira com plataformas digitais não é casual, ela indica o direito de controlar discursos de ódio, desinformação e uso criminoso das redes sociais, presentes aqui na trama do golpe de 8 de janeiro de 2023.
Normas mais rígidas existem no Ocidente: os EUA cercearam a TikTok, e a Europa aplicou multa de 2,95 bilhões de euros (R$ 18,7 bilhões) ao Google, e cobra das plataformas de redes para fiscalizá-las.
Está em jogo a soberania – o direito de adotar leis sem intromissão externa.
No Brasil, juízes do STF, acusados de atacar a liberdade de expressão ao exigir que as redes sigam nossas leis, sofrem sanções dos EUA.
No Nepal, a afronta à ordem legal veio do Comitê para Proteger Jornalistas (CPJ, ‘Committee to Protect Journalists’), ONG patrocinada pelos EUA, com alegações similares, de que bloquear redes impediria o jornalismo e a livre informação.
As redes foram bloqueadas por não se registrarem, então são responsáveis por sua suspensão.
Antes, semearam o golpe. Três vídeos (um deles, abaixo) circularam nas redes nepalesas, denunciando desigualdades sociais, com a miséria do povo contraposta ao luxo das elites governantes.
O ataque ao governo possui rastros das revoluções coloridas: acusações de corrupção e discursos de ódio com áudio, legendas e textos em inglês, não no idioma local – o nepali.
Numa faixa plástica levada no protesto, bem impressa, sem improviso, lê-se: ‘Youths against corruption’ (Jovens contra a corrupção).
Tal material, produzido antecipadamente, é típico de revoltas orquestradas pela CIA, uma assinatura das revoluções coloridas.
Foi o que ocorreu no EuroMaidan, em 2013, onde cartazes em inglês miravam na difusão nas mídias, em vez de dialogar com o povo e o protesto em si.
Penso que o governo viu a tramoia dos vídeos e impôs o registro e ajustes na conduta das empresas de redes, apoiado pela Suprema Corte. Deu sete dias de prazo, arriscando-se ante a manipulação antissocial.
Quando o Nepal bloqueou as redes o caldo de ódio já cobria o país. Novamente, há semelhanças com os acampamentos em frente a quartéis no Brasil, nas semanas anteriores à tentativa de golpe em Brasília.
Iniciada a revolta lá, houve disparos do alto de um prédio, com 19 mortes, no estilo de Kiev em 2014.
Outra coincidência. Depois vieram os incêndios – Parlamento, Suprema Corte, Palácio do Governo, hotéis e residências da elite, com pessoas pulando dos prédios. Não se sabe quantas morreram no fogo.
Na continuação, saques nas lojas e casas ricas, com o exército exercendo frouxa contenção.
No Brasil os golpistas não destruíram totalmente as sedes dos três poderes, mas faltou pouco.
Concluo recuando no tempo e ampliando o foco, conforme prometi.
Em 6 de agosto Trump aplicou tarifa adicional de 25% aos produtos da Índia, aliada dos EUA, até que ela parasse de comprar petróleo russo. O primeiro-ministro, Narendra Modi, não cedeu. Indignado, recusou quatro telefonemas posteriores de Trump.
Na virada de agosto para setembro Modi reuniu-se em Tianjin, na China, com Xi Jinping e Putin. Foram vistos num fraterno aperto de mãos triplo, na cúpula da Organização para a Cooperação de Xangai (OCS, ou SCO, em inglês), onde havia vinte chefes de Estado do Sul Global.
Trump e a União Europeia os acusaram de conspirar contra o Ocidente.
Modi e Xi estreitaram laços, esquecendo disputas fronteiriças em prol da cooperação econômica. Xi fez acordo com Putin para construir gigantesco gasoduto através da Mongólia e ampliar negócios. Modi quer mais aviões e sistemas de defesa antiaérea S-400 russos, e manterá as compras de petróleo que revende com ágio para países europeus.
O Ocidente abusou tanto de sanções ilegítimas que uniu os sancionados – Irã incluído –, que negociam cada vez mais nas suas moedas, à margem do dólar e euro.
Um mundo multipolar está em construção, não contra o Ocidente, mas liberto da hegemonia dele.
O Nepal é parceiro da OCS desde 2016, e esteve na China com Xi, Putin e Modi. São muitos “acasos”, além de o Nepal ficar entre China e Índia. Se estas se uniram, por que não criar caos no país entre elas?
Pra completar, em 2024 o Nepal confirmou a parceria com a China no projeto Um Cinturão, Uma Rota, ou Nova Rota da Seda (‘Belt and Road Initiative’, BRI), combatida pelos EUA, inclusive na retomada agressiva da Doutrina Monroe – pela qual a “América Latina deve ser quintal dos EUA”.
Reforça as suspeitas o nome que inicialmente surgiu para formar novo governo: Balendra Shah, ‘rapper’ e prefeito de Katmandu, a capital, defensor do Grande Nepal – devolução ao Nepal de territórios da Índia – de quem é opositor ferrenho, até na cultura.
Muitas coincidências, não? E as redes dos EUA voltaram a funcionar sem cumprir as leis locais.
A escolhida como primeira-ministra interina foi a ex-presidente da Suprema Corte do Nepal, Sushila Karki (73 anos, juíza aposentada) – única mulher nepalesa a assumir tais cargos –, e não Shah, não por enquanto.
O presidente, mantido no cargo, dissolveu o Parlamento e marcou eleições para março.
Do pacote fazem parte os golpes contra desafetos dos EUA no Paquistão (2022) e em Bangladesh (2024), agora com governos servis.
Revolta espontânea dos jovens? Ou nova revolução colorida da CIA?
*Jordan Michel-Muniz é ativista social, mestre e doutor em filosofia pela UFSC, e pesquisa temas ligados à geopolítica, democracia e injustiças.