O preço do café dispara e expõe o impacto da tarifa de Trump sobre o Brasil, agravando uma crise já alimentada por colheitas fracas e clima instável
Nada simboliza melhor a rotina americana do que a xícara de café matinal. O aroma, a cor escura, o primeiro gole — tudo isso é parte de um ritual coletivo, quase sagrado, para dois terços da população dos Estados Unidos. Mas hoje, esse pequeno ato de conforto está sendo transformado em um luxo acessível apenas aos mais ricos — não por falhas naturais da economia, nem por uma crise climática incontrolável, mas por uma decisão política deliberada, ideologicamente carregada e economicamente insensata: as tarifas de 50% impostas por Donald Trump sobre as importações de café brasileiro.
Este não é um simples ajuste comercial. É um ataque à vida cotidiana de milhões de americanos comuns, disfarçado de “proteção nacional”. E ele vem acompanhado de uma lógica perigosa, típica da extrema-direita americana: a crença de que o sofrimento das massas é preço aceitável pela “soberania econômica”, mesmo quando essa soberania é ilusória e o custo é pago pelos trabalhadores, pelos aposentados, pelos pais que escolhem entre pagar a conta de luz ou manter o café na mesa.
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O café não cresce nos EUA — mas a ideologia da retaliação sim
O Brasil produz cerca de um terço do café arábica consumido nos Estados Unidos. Arábica. O tipo premium, o sabor suave, o que faz da manhã americana algo mais do que uma necessidade — algo que se tornou uma cultura. O Vietnã e a Colômbia tentam suprir a lacuna, mas seus grãos são de qualidade inferior, suas capacidades logísticas limitadas, e suas colheitas já estão sob pressão climática. Quando Trump impôs essas tarifas, não foi uma estratégia de negociação. Foi um ato de vingança geopolítica, um gesto de força bruta contra um país que não ameaça os EUA militarmente, mas que desafia seu domínio econômico com sua produtividade e eficiência.
E qual é o resultado? O preço do café moído atingiu US$ 8,87 por libra em agosto — o maior nível desde 1997. Um aumento de 21% em um ano. Isso não é inflação normal. É inflação provocada. E ela não chegou por acaso. Chegou porque alguém decidiu que o Brasil deveria pagar por sua independência, por sua capacidade de produzir algo que os EUA não conseguem produzir — e que, portanto, deve ser punido.
Isso é o que a extrema-direita faz: transforma interdependência em fraqueza, e cooperação internacional em traição. Enquanto os líderes europeus e asiáticos buscam alianças para enfrentar juntos as mudanças climáticas e as rupturas nas cadeias globais, a extrema-direita americana escolhe o caminho da autossuficiência fantasiosa — e da repressão econômica.
A crise climática é real
Sim, as mudanças climáticas estão devastando as lavouras no sul do Brasil, no sul da Colômbia, no centro do Vietnã. Secas, geadas, chuvas irregulares — tudo isso reduziu a oferta global. Mas se os preços estivessem subindo apenas por causa do clima, o mercado teria respondido com aumento de produção em outras regiões, com investimentos em tecnologias agrícolas resilientes, com políticas públicas coordenadas.
O que aconteceu, na verdade, foi exatamente o oposto. Em vez de cooperar, os EUA cortaram uma das principais fontes de abastecimento. Em julho, as exportações brasileiras para os EUA caíram pela metade. Em agosto, caíram mais de 75%. Isso não é consequência da crise climática. É consequência da decisão política de Donald Trump.
E os especialistas avisam: os estoques que ainda amortecem o impacto estão se esgotando. Os embarques de Santos levam até 20 dias para chegar. A torrefação leva mais tempo. O repasse aos consumidores será lento — mas inevitável. E quando chegar, será brutal.
Thijs Geijer, economista sênior do ING, alerta: “Será necessário enviar remessas adicionais novamente, mas a questão é: de onde elas virão?” A resposta é óbvia: não há substituto viável. E se houver, será mais caro. E mais instável.
O varejo tentando segurar o preço — mas não pode fazer sozinho
Kroger, a maior rede de supermercados dos EUA, diz que está absorvendo parte do aumento. Que “ocasionalmente” as tarifas afetarão os preços. Mas isso é linguagem corporativa para dizer: “Estamos tentando proteger nossos clientes, mas não podemos continuar assim.”
Como pode uma empresa privada sustentar esse sacrifício indefinidamente? Se o custo do café aumenta 20%, e o salário médio americano cresce menos de 3% ao ano — como esperar que o varejo continue pagando a conta?
É aqui que a extrema-direita mostra sua hipocrisia radical: enquanto grita por “menos governo” e “livre mercado”, ela cria distorções artificiais que só podem ser corrigidas pelo próprio Estado — mas só se o Estado for usado para proteger os interesses da elite.
Quando o setor alimentício pede isenções para o café — como fez com urgência —, a Casa Branca responde com uma lista preliminar de “possíveis exceções”. Uma lista. Não uma decisão. Um adiamento. Um jogo político.
Enquanto isso, famílias americanas estão sendo obrigadas a escolher: café ou pão? Café ou medicamentos? Café ou transporte público?
O café é símbolo — e a tarifa é símbolo também
O café não é apenas uma bebida. É um símbolo da vida diária, da rotina, da dignidade simples. É o que mantém o professor acordado, o enfermeiro em pé, o motorista de aplicativo dirigindo por horas, o escriturário preparando o dia. É um bem essencial, não de luxo. E agora, ele está sendo usado como arma.
A extrema-direita americana tem uma visão profundamente elitista da economia: acredita que o mundo funciona como um jogo de xadrez, onde o sofrimento das classes trabalhadoras é um movimento aceitável para derrotar um adversário estrangeiro. Mas o Brasil não é um inimigo. É um parceiro. E o café não é um produto estratégico de defesa — é um bem de consumo cotidiano.
Essa tarifa não fortalece os EUA. Ela enfraquece o poder de compra da classe média e da classe trabalhadora. Ela aumenta a inflação alimentar — que já subiu 2,9% em agosto, o maior índice desde janeiro — e transforma um hábito cultural em um fardo financeiro. E tudo isso, em nome de uma narrativa populista que promete “fazer a América grande de novo”, enquanto faz os americanos comuns cada vez mais pobres.
O preço da ignorância econômica
A extrema-direita não entende economia. Não entende cadeias globais. Não entende que a prosperidade dos EUA depende da integração, não da autarquia. Ela pensa que, se bloquear o café brasileiro, os EUA vão se tornar mais fortes. Mas o que acontece é o contrário: os EUA se tornam mais vulneráveis.
Enquanto o Brasil investe em agricultura sustentável, em tecnologia de cultivo resistente às mudanças climáticas, os EUA se recusam a investir em qualquer coisa que não seja guerra, vigilância e retórica. Enquanto o mundo busca soluções multilaterais para a crise alimentar, os EUA sob liderança trumpista escolhem o isolamento.
E quem paga? Os trabalhadores. As mães. Os idosos. Os estudantes. Os que não têm poder de lobby, mas têm que beber café para funcionar.
O setor alimentício — que inclui torrefadoras, redes de supermercados e empresas de logística — pediu isenção. Eles sabem que não existe café americano competitivo. Sabem que não é possível cultivar arábica de alta qualidade no Texas ou na Califórnia. Sabem que a solução é negociar, não retaliar.
Mas a extrema-direita não ouve. Ela não quer soluções. Ela quer vitórias simbólicas. Ela quer mostrar que “Trump ainda está no controle”, mesmo quando o controle é ilusório.
E isso é o que torna essa política tão perigosa: ela não é errada por incompetência. É errada por intenção.
Os contratos futuros do café já dispararam. Os preços vão subir mais. Em outubro. Em novembro. Talvez em dezembro, quando as famílias precisarem comprar presentes de Natal e ainda assim manterem o café na mesa.
E quando isso acontecer, os republicanos de direita vão dizer: “Foi a inflação! Foi o governo Biden! Foi o clima!”
Mas nós sabemos a verdade.
Sabemos que foi uma tarifa de 50% sobre o café brasileiro — imposta por um homem que nunca trabalhou em uma plantação, nunca bebeu um café feito com grãos de Minas Gerais, nunca sentiu o peso de uma xícara vazia na mão de alguém que não pode pagar.
Sabemos que foi a extrema-direita americana, com sua obsessão por confronto, sua aversão à cooperação e seu desprezo pela vida real das pessoas comuns.
Não basta reclamar. Precisamos exigir. Exigir que o Congresso impeça essas tarifas. Exigir que o Departamento de Comércio reconheça que o café não é um produto de segurança nacional — é um bem essencial. Exigir que o presidente — qualquer presidente — pare de usar o bolso dos americanos como moeda de troca em jogos geopolíticos malucos.
E, acima de tudo, precisamos denunciar essa lógica: a de que o sofrimento popular é aceitável se for usado para “punir” países que não se curvam à hegemonia norte-americana.
O café não é um símbolo de consumo. É um símbolo de humanidade. De rotina. De dignidade. E agora, está sendo tomado como refém por uma ideologia que odeia o mundo que construímos juntos.
Se você bebe café todos os dias — e a maioria dos americanos bebe — então você está sendo taxado por uma política que não serve ao seu interesse. E você tem o direito — e a responsabilidade — de dizer: basta.
A América não precisa ser grande com a fome dos seus próprios cidadãos.
A América pode ser grande — sem tirar o café da mesa dos pobres.