Parte de um julgamento histórico, o voto da ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Cármen Lúcia, que definiu a condenação inédita de um ex-presidente da República por golpe de Estado, foi marcado por mensagens políticas e até mesmo citações literárias.

A magistrada deu o voto que formou a maioria, na quinta-feira (11/09) pela punição de Jair Bolsonaro (PL) e outros sete réus por cinco crimes.

O voto de Cármen Lúcia abriu a sessão após um dia anterior tomado na íntegra pela manifestação de Luiz Fux, único ministro a divergir do relator, Alexandre de Moraes, e a votar pela absolvição do ex-presidente.

Cármen Lúcia afirmou ter, também ela, um voto longo, mas de saída avisou que resumiria seus argumentos para poupar tempo — e a maioria pela condenação do ex-presidente, assim, formou-se em pouco menos de duas horas de sessão.

Após a ministra, votou o presidente da Primeira Turma do STF, ministro Cristiano Zanin, que também se manifestou pela condenação de todos os réus por todos os crimes listados na denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR).

Os oito réus do caso foram acusados de cinco crimes: organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta ao Estado democrático de direito; golpe de Estado, dano ao patrimônio da União; e deterioração de patrimônio tombado.

As defesas alegaram a inocência de seus clientes.

Segundo a acusação, os oito réus participaram de uma organização criminosa que, desde 2021, praticou atos para impedir a transição democrática de poder no caso de uma eventual derrota nas eleições de 2022 e que culminaram com uma tentativa de golpe de Estado no dia 8 de janeiro de 2023, quando as sedes dos Três Poderes foram invadidas por manifestantes insatisfeitos com a derrota eleitoral de Jair Bolsonaro para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Por quatro votos a um, Bolsonaro acabou condenado a 27 anos e três meses de prisão, 24 dos quais em regime fechado.

Os outros condenados foram:

  • Mauro Cid (tenente-coronel do Exército e ex-ajudante de ordens de Bolsonaro) – dois anos de prisão;
  • Walter Braga Netto (general da reserva e ex-ministro da Casa Civil) – 26 anos de prisão;
  • Almir Garnier (almirante e ex-comandante da Marinha) – 24 anos de prisão
  • Anderson Torres (delegado da Polícia Federal e ex-ministro da Justiça) – 24 anos de prisão;
  • Augusto Heleno (general da reserva e ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional)- 21 anos de prisão;
  • Paulo Sérgio Nogueira (general da reserva e ex-ministro da Defesa) – 19 anos de prisão;
  • Alexandre Ramagem (deputado federal, delegado da Polícia Federal e ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência) – 16 anos de prisão.

O Supremo determinou que Bolsonaro inicie o cumprimento da pena em regime fechado, ou seja, o ex-presidente deve ser conduzido a uma instalação penal ou ainda a alguma estrutura especial como uma cela na Polícia Federal. Mas não foi decidido, ainda, para onde o ex-presidente será enviado.

Além de sentenciados à prisão, os réus foram declarados inelegíveis pelo prazo determinado pela Lei da Ficha Limpa: desde o ato da condenação até oito anos após o término do cumprimento das penas.

Os réus também foram condenados ao pagamento de uma multa de R$ 30 milhões a ser dividida pelos oito.

A defesa de Jair Bolsonaro é uma das que se mostrou disposta a contestar junto ao STF tanto a condenação quanto a intensidade das penas.

Em nota divulgada logo após o julgamento, os advogados Celso Vilardi e Paulo Bueno chegaram a afirmar que questionariam as penas dadas ao ex-presidente até em âmbito internacional.

“A defesa entende que as penas fixadas são absurdamente excessivas e desproporcionais e, após analisar os termos do acórdão, ajuizará os recursos cabíveis, inclusive no âmbito internacional”, diz um trecho da nota enviada pela defesa.

Moraes e Cármen Lúcia votaram pela condenação dos réus | AFP

As mensagens no voto de Cármen Lúcia

A ministra Cármen Lúcia deu início ao seu voto fazendo uma breve introdução sobre a importância que ela atribuiu ao julgamento do caso.

Segundo ela, o caso da suposta trama golpista era diferente dos demais processos que o STF já julgou.

“O que há de inédito, talvez, nessa ação penal é que nela pulsa o Brasil que me dói. A presente ação penal é quase o encontro do Brasil com seu passado, com seu presente e com seu futuro”, disse a magistrada em uma alusão ao histórico de golpes de Estado pelo qual o Brasil passou desde que virou uma República, em 1889.

“Nossa República tem um melancólico histórico de termos poucos republicanos e, por isso, a importância de cuidar do presente processo”, afirmou a ministra.

Logo após fazer essa introdução, a ministra deixou claro que não concordava com a tese de seu antecessor no julgamento, o ministro Luiz Fux, que classificou os atos de 8 de janeiro de 2023 como praticados por “baderneiros” sem conexão com algum tipo de liderança.

“Em todo caso, e aqui não foi diferente, apenas gostaria de registrar no final que o 8 de janeiro de 2023 não foi um acontecimento banal depois de um almoço de domingo, quando as pessoas saíram a passear”, disse a magistrada.

Logo em seguida, Cármen Lúcia já deu indicações, de que condenaria não apenas Jair Bolsonaro, mas os demais réus pelos seus envolvimentos na suposta trama golpista.

“Já antecipo que para mim, [a PGR] fez prova cabal de que um grupo liderado por Jair Messias Bolsonaro, composto por figuras chaves do governo das Forças Armadas e de órgãos de inteligência, desenvolveu, implementou plano progressivo e sistemático de ataque às instituições democráticas ticas, com a finalidade de prejudicar a alternância legítima de poder nas eleições de 2022”, disse Cármen Lúcia.

O ministro Cristiano Zanin, que votou depois de Cármen Lúcia, seguiu pela mesma linha da magistrada e também pediu a condenação de todos os réus acusados pela PGR.

Durante a leitura do voto de Zanin, foram protagonizados alguns momentos em que os ministros fizeram discursos sobre o caráter simbólico do julgamento.

Em determinado momento, durante uma intervenção no voto de Zanin, Cármen Lúcia usou uma metáfora entre a democracia de um país e a saúde de um ser humano.

O ministro Flávio Dino, então, acompanhou a metáfora.

“[Que] esse julgamento, ministra Cármen, [seja] o check-up da democracia”, disse o ministro.

A magistrada respondeu no mesmo tom.

“E eu espero que seja este, o julgamento, um remédio para que [a ameaça à democracia] não volte com frequência. A recidiva não é boa”, afirmou a ministra.

Bolsonaro e demais réus foram julgados pela Primeira Turma do STF | AFP

Em outro trecho da sessão, o relator do caso, ministro Alexandre de Moraes, fez menções às pressões internacionais impostas pelos Estados Unidos em função do julgamento de Bolsonaro.

“Nós estamos dando um precedente a todos os juízes brasileiros que eles podem contar com o Supremo Tribunal Federal para ter coragem de aplicar a lei para não se vergarem em sanções nacionais ou estrangeira. E somente a justiça aplicada igualmente a todos pode ser realmente chamada de justiça”, disse o magistrado.

Em julho, os Estados Unidos anunciaram tarifas de 50% a produtos exportados pelo Brasil e vincularam a medida ao julgamento de Jair Bolsonaro. Moraes foi alvo de sanções econômicas pela Lei Global Magnitsky e outros ministros da Corte tiveram seus vistos de viagem aos Estados Unidos revogados.

Nesta quinta-feira (11/9), o presidente americano, Donald Trump, comentou a condenação de Bolsonaro.

“Eu achava que ele era um bom presidente do Brasil, e é muito surpreendente que isso tenha acontecido. É muito parecido com o que tentaram fazer comigo, mas não conseguiram”, disse Trump.

Pouco depois, o Secretário do Departamento de Estado norte-americano, Marco Rubio, postou uma mensagem na rede X (antigo Twitter) criticando a condenação de Bolsonaro e prometendo reações.

“As perseguições políticas do abusador de direitos humanos Alexandres de Moraes continuam à medida em que ele e outros ministros da Suprema Corte brasileira condenaram o ex-presidente Jair Bolsonaro injustamente. Os Estados Unidos irão responder apropriadamente a esta caça às bruxas.”

Penas severas?

Na avaliação de criminalistas ouvidos pela BBC News Brasil, as penas impostas a Bolsonaro são “severas”, mas não chegariam a ser “excessivas”.

Nessa linha, eles discordam da tese levantada pela defesa de Bolsonaro, que classificou as penas impostas ao ex-presidente como “absurdamente excessivas e desproporcionais”.

O professor de Direito Penal do Ibmec do Rio de Janeiro Taiguara Libano disse que a pena de Bolsonaro foi acima do mínimo estabelecido e que o provavelmente influenciou nisso foi o fato de, na época em que a maior parte dos fatos investigados aconteceu, ele ser o presidente da República.

“Espera-se do chefe do Poder Executivo um comportamento de acordo com a lei, com a Constituição. Imagino que a responsabilidade de um chefe do Poder Executivo é maior do que de um cidadão comum. Então, o Supremo deve ter levado isto em consideração ao fixar as penas”, diz o professor.

Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP), o jurista Marcelo Semer diz considerar a pena definida para o ex-presidente como justa.

“Não houve excesso. Ela poderia chegar a 43 anos. E as pessoas sem poder de mando receberam até 17”, afirmou. “São vários crimes.”

Com relação a Mauro Cid, no entanto, o desembargador afirma que a pena foi baixa, mas motivada pelo fato de o militar ter feito um acordo de colaboração premiada. “Eles acharam por bem manter o acordo. E isso gera um grande estímulo à delação, principalmente nos outros núcleos.”

O professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal Fluminense (UFF) João Pedro Pádua, afirma que Bolsonaro não teria como receber uma pena baixa, a partir do momento em que foi condenado pelos cinco crimes da denúncia.

Ele nota que as penas mínimas previstas para esses crimes, somadas, já partem de mais de 12 anos de prisão, enquanto as penas máximas poderiam superar 40 anos.

“A gente está falando de um máximo de pena de 40 anos. O líder Jair Bolsonaro ficou em torno de 27 anos, o que é cerca de dois terços da pena máximo. É uma pena razoável, mais ou menos o esperado”.

Para o professor de Direito da Fundação Getulio Vargas de São Paulo, Wallace Corbo, as penas dadas aos réus foram altas, mas o principal motivo disso foi o fato de eles serem considerados os líderes da suposta organização criminosa.

“Foram penas mais elevadas, dado que esses réus lideraram efetivamente, coordenaram aquelas pessoas. Já era esperado que elas fossem mais elevadas e já era esperado que elas fossem atingir mais ou menos esse patamar de aproximadamente 30 anos (de reclusão)”.

O que acontece agora?

Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil explicam que a condenação na sessão desta semana não significa que Bolsonaro e os outros réus serão presos imediatamente.

Antes disso, é preciso que o STF publique o acórdão do julgamento, que é uma espécie de certidão contendo todas as informações do caso. Isso deve acontecer nas próximas semanas.

Depois disso, as defesas terão até cinco dias para mover recursos à Primeira Turma do STF. Esses recursos são os chamados “embargos de declaração”.

Publicado originalmente pela BBC News em 12/09/2025

Por Leandro Prazeres e Mariana Schreiber da BBC News Brasil em Brasília e
Mariana Alvim e Rute Pina da BBC News Brasil em São Paulo

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Last Update: 12/09/2025