“Acenda a lâmpada às seis da tarde
Acenda a luz dos lampiões
Inflame a chama dos salões
Fogos de línguas de dragões
Vaga-lumes
Numa nuvem de poeira e neon
Tudo claro
A noite assim que é bom
A luz acesa na janela lá de casa
O fogo
O foco lá no beco e no farol
Nesta noite vai ter sol”

Luzes, Paulo Leminski (1943 – 1989)

O poema  –  na voz grave de Arnaldo Antunes ao abrir a 23a Festa Literária de Paraty –  surtiu um efeito quase mágico naquela  noite iluminada feito fogo; lampiões nas janelas abertas e  ruelas coloridas tendo a obra de  Leminski como farol.  Era 30 de julho e teríamos alguns dias para entrar nos casarios coloniais transformados em salões ardendo em prosa e verso, cruzar as esquinas com saraus e concertos improvisados, respirar ares leminskianos  em meio à dezenas de escritoras latino-americanas, correr atrás da espanhola Rosa Montero, levantar a bandeira palestina na mesa do historiador israelense anti-sionista  Ilan Pappé, tirar foto com a turma de Escreviventes, assistir os viscerais  GauZ (marfinense)  e  Gael Faye (franco-ruandês) , almoçar no Quilombo do Campinho.e dormir quando desse tempo.

Num delírio polyânico, mesmo sentindo no bolso os preços segregacionistas e sabendo que aquela pipoca grátis vinha do patrocínio de megaempresas como a Vale e Itaú, fui possuída por uma agitação em que a literatura serve de ponte para tocar aquelas partes de nossas vidas que precisam ser acesas, que precisam sair da sombra, que precisam de sol.

Assim, aventurei-me apesar da falta que fez a rebelde Flipei (Festa Literária Pirata das Editoras Independentes), nascida como contraponto ao domínio das grandes editoras que ditam as regras na Flip e que foi piratear por outras bandas desde ano passado após sucessivos ataques da extrema-direita, desrespeitos por parte do poder público e omissões de responsáveis pela Flip.

Elas por elas: literatura  na América Latina

“É importante não falar em boom…A circulação de
escritoras latinas não deveria ser vista como
conjuntural, específica da nossa época, mas como
parte da história da nossa literatura”

Alia Trabucco Zerán (O Globo, 01.08.25)

Somado aos debates e pesquisas sobre literatura produzida por mulheres, escritoras de outros países da América Latina estão sendo traduzidas para a língua brasileira ou reeditadas como parte de um processo de subversão literária em curso apesar da persistente elitização de acesso para a maioria da população. Nos últimos anos tem sido frequente a referência à profusão de obras em que o terror, o sinistro, e o insólito estão presentes. Ao contrário do que se possa imaginar como uma novidade, é expressão da longa linhagem de pioneiras da literatura fantástica ainda desconhecidas do grande público brasileiro. É o caso da chilena Maria Luísa Bombal (1910-80) cujo livro  “A amortalhada” (1938, editada no Brasil pela Difel,1986) lançou as bases do chamado realismo mágico latino-americano, muito antes do colombiano Gabriel G. Márquez.

Especificamente em relação à Flip 2025, além de dezenas de escritoras na programação paralela, de presenças marcantes da literatura nacional como, entre tantas, Conceição Evaristo, Alice Ruiz, Lilia Guerra, Verenilde Pereira, Eliane Marques, da espanhola Rosa Montero, da sueca Liv Stromquist e da literatura queer da surinamesa Astrid Roemer, as latino-americanas foram destaque na programação oficial e nas rodas de debates. Eis aqui algumas delas:

Cristina Rivera Garza/México

Em 16 de julho de 1990 sua irmã mais nova foi estrangulada até a morte  na cama pelo namorado, não encontrado até hoje. Essa experiência traumática serve de pano de fundo para o livro  “A invencível história de Liliana” (Autêntica Contemporânea, 2022). Já em “Autobiografia do algodão” (Autêntica  Contemporânea, 2025) a premiada escritora  investiga uma greve de agricultores em inicio do século XX na fronteira entre México e E.U.A.

Dahlia de la Cerda/México

Recém lançado no Brasil, “Cadelas de aluguel” (DBA, 2025) reúne 13 histórias em que as personagens se movem  insubmissas. Segundo a autora – que é  ativista junto à mulheres que optam por abortar e também com grupos de familiares de vítimas de feminicídio e desaparecidos pelo narcotráfico – sua literatura funciona como uma vingança em que as protagonistas lidam com as múltiplas violências sofridas no México,

Alia Trabucco Zerán/Chile

Seu primeiro romance, “Subtração” (Moinhos, 2020) é considerado um dos melhores de estreia, em 2015, pelo Jornal El País. Na Flip, dividindo mesa com a brasileira Lilia Guerra para falarem sobre o tema de trabalho doméstico presente em seus livros, Alia explica que seu “Limpa” (Fósforo, 2024) surgiu a partir de um trabalho de não-ficção – “As homicidas” (Fósforo, 2023) – ensaios sobre assassinas que escandalizaram o Chile no século XX.

Dolores Reyes/Argentina

Em novembro de 2024, mais de 120 escritores argentinos realizaram leitura coletiva de livros ameaçados de censura pelo Governo Milei. Entre eles estava o romance “Cometerra”” (Moinhos, 2022), em que o fantástico parece ser uma triste alegoria do terror cotidiano. Professora alfabetizadora que atuou por décadas nas periferias de Buenos Aires,  formada  em Literatura Clássica,  Dolores se apresenta também como mãe de 07 filhos e feminista.

Leminski presente! O dia em que a ponte foi ocupada por caiçaras, indígenas e quilombolas

“Cansei da frase polida
por anjos da cara
pálida
agora eu quero a
pedrada
chuva de pedras
palavras
distribuindo pedradas”

Palavras e pedras/Paulo Leminski (1944-89)

Nem mesas alternativas ou saraus! Talvez a maior de todas homenagens a Leminski tenha vindo como seus poemas – uma mistura refinada entre saberes milenares e urgências das ruas.  Na ponte que ao mesmo tempo une e separa o Rio Perequê-Açu. o encontro das comunidades indígenas, caiçaras e quilombolas da região. Que diriam seus personagens de “Catatau” diante de tamanha desordem anti-cartesiana?

“Veta, Lula!” e “Xô, Emiliano”. Nada mais leminskiano do que um afronte, ocupar a ponte, fazer canoaço de protesto, sair da linha reta, romper com o organograma oficial. E assim foi naquela tarde que antecedeu a mesa de debates com a Ministra do Meio Ambiente – Marina Silva. Organizado pelo Fórum de Comunidades Tradicionais de Paraty, Angra dos Reis e Ubatuba a pauta era contra o ‘PL da Devastação’ e o projeto de construção de um Hotel Emiliano em plena área de preservação ambiental na região.

Até que no dia 18.08, a Justiça Federal suspendeu a licença para instalação do tal Hotel Spa e exigiu a consulta prévia, livre e informada às comunidades que são diretamente impactadas pelo megaempreendimento. O projeto prevê  a construção de 67 cabanas de luxo em uma zona de manguezal dentro da Área de Proteção Ambiental (APA) de Cairuçu e situado em sítio reconhecido como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO em 2019.. (FSP, 20.08.25).

Evidente que essa vitória parcial da luta pela preservação ambiental e das comunidades tradicionais só foi possivel pela mobilização desses povos – guardiões das matas, dos modos de vida ancestrais e do patrimônio histórico e cultural.

Gosto de pensar no protesto da ponte como expressão da atualidade histórica de outros modos de perceber o mundo e de construir futuros. Gosto também de pensar que é a concretização do estranhamento e espanto que Leminski quis causar na leitura de “Catatau” (1975), considerada sua obra-prima, em que fantasia uma visita ao Brasil de Descartes (1596-1650) – filósofo francês que moldou o pensamento racional e utilitarista do Ocidente – cujo pensamento é desestruturado em contato com as culturas dos povos originários. De minha parte, olho para o livro, abro uma página e fecho. Creio que meu cérebro domesticado ainda não está preparado para essa aventura literária. Enquanto isso,sigo nas ruas!

Racismo e “perifobia” em plena Flip: Todo apoio à Lilia Guerra

“É porque sou pobre, porque sou negra?
Será que um autor branco, famoso, teria
passado pela mesma situação?

(Lilia Guerra,Bravo, 19.08.25)

Cena 01 – Numa das mesas oficiais da Flip, junto à escritora chilena Alia Trabucco Zerán, em determinado momento Lilia lê um trecho de seu livro “O céu para os bastardos”. Nele a personagem é acusada de furto pela patroa. A partir dali a trabalhadora doméstica passa a usar uma bolsa pequena para evitar novas acusações.

Cena 02 – A Festa Literária terminara. Lilia Guerra estava em sua casa, possivelmente tranquila, ciente do reconhecimento de seu trabalho literário como debatedora. De repente, recebe uma mensagem de que está sendo acusada de furto de “uma manta e um lençol” por parte da pousada em que ficou hospedada como convidada pela organização da Flip. Corta a cena!

A premiada escritora brasileira, negra, trabalhadora na área de enfermagem do SUS e moradora de Cidade Tiradentes, zona leste de SP – autora da coletânea de histórias  “Perifobia” (2018) e “O céu para os bastardos”(2023) – veio à público  relatar esse ataque racista. À parte detalhes sórdidos como o quarto em péssimas condições em que foi alojada, o texto enviado pela equipe da Flip foi estarrecedor: A escritora fez questão de torná-lo público também. “Duvido muito que isso tenha acontecido, mas, se aconteceu, você só confirma para a gente pagar”. Segundo Lilia em nota oficial “Isso acabou comigo. Eu não conseguia acreditar que estavam cogitando que eu pudesse ter furtado”.

Como uma triste confirmação da matéria bruta de sua literatura e do quanto o racismo é praticado cotidianamente, a situação absurda a que Lilia foi submetida se torna ainda mais emblemático na medida em que as mesas da Festa Literária discutiam sobre racismo enquanto o mesmo estava sendo gestado no alojamento e depois reproduzido pela própria equipe organizadora do evento. Por toda a situação criada a organização da Flip deve se retratar publicamente, responsabilizar a tal pousada “Garden Hotel Boutique” e romper contrato.

Sigamos! Com Lilia & Leminski em noites de sol e chuvas de palavras feito pedras!

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Last Update: 09/09/2025