Quem acessa as emergências de Porto Alegre?

“O pessimismo é um assunto da inteligência; o otimismo, da vontade”
Gramsci

Por Aline Blaya*

Ano passado fui lavar um grande aquário. No momento de tirar a água, ao emborcá-lo, escorregou das minhas mãos e se estilhaçou, lançando um grande fragmento que provocou um corte profundo em uma das minhas mãos.

Era um domingo pela manhã e eu estava sozinha em casa. Catei um pano de prato para estancar o sangue enquanto ele jorrava e sujava cada metro de chão por onde eu passava. Não tinha jeito, a única escolha sensata era ir ao pronto-socorro, que, por sorte, é próximo à minha casa.

Cheguei sozinha. Fui avaliada e aguardei. Depois de um longo tempo de espera fui atendida por uma profissional claramente descontente por estar me atendendo. Mandou que lavassem a ferida e, mais uma vez, percebi seu incômodo. Desta vez, porque eu não quis olhar e porque estava visivelmente com medo.

Doía bastante. Na anestesia, pensei na respiração guiada das técnicas de relaxamento e comecei mentalmente: inspira em 1, 2, 3… Expira em 5, 4, 3, 2, 1… Ela, irritada, me perguntou: Para que isso?? Devolvi: Te atrapalho? Se te atrapalhar eu paro, se não te atrapalhar, sigo, porque me ajuda. Ela: Faz o que tu quiser!

Feita a sutura, me entregou um papel e, sem uma palavra, me mandou passar na portaria para que me explicassem o conteúdo.

Serviços de emergência são grandes portas de entrada para o Sistema Único de Saúde e, geralmente, são pontos nevrálgicos do sistema. Ninguém busca tais serviços caso não esteja, no mínimo, sentindo que há uma condição crítica na sua saúde ou na saúde de um familiar.

Todo cidadão pode acessar um destes serviços via ambulâncias do SAMU ou por meios próprios.

Neste caso, quase sempre, a pessoa vai pensar na representação social que carrega em seu imaginário sobre como virá a ser a experiência de buscar o atendimento:

— Receberá um acolhimento hostil?

–Passará por uma “classificação” que não faz sentido para ele?

–Ficará por horas esperando em um cadeira gelada rodeado por um monte de gente sofrendo e com rostos nada amigáveis?

–Estará em um lugar onde pessoas correm de um lado para o outro entre macas e cadeiras dispostas em meio a corredores?

Provavelmente tenham sons ambientes de choro, talvez gritos e sirenes. Os cheiros poderão ser uma mistura nada aprazível de produto de limpeza, álcool e remédios…

E, depois de tudo, possivelmente receberá um atendimento dispensado por médicos e equipes de enfermagem estressados, cansados e atravessados pela dureza de um cotidiano que quase todo dia parece com uma guerra. Por fim, exausto e ainda se sentindo mal, voltará para casa sem certeza alguma de que ficará bem.

A representação social que modula a expectativa sobre o atendimento e a escolha por buscar ou não o atendimento será diretamente determinada por traços culturais, pelo território onde a pessoa vive e pela situação econômica, social e política que atravessam sua existência. As relações implementadas no interior de serviços e sistemas de saúde também são, de alguma forma, expressão da sociedade e da história das pessoas que se encontram lá.

Faço tal reflexão para dizer que, habitualmente, a população é julgada de forma desonesta por buscar um serviço de emergência ao invés de uma unidade básica de saúde, sendo que, a priori essa escolha não é uma escolha e sim uma necessidade, por alguma razão, imperativa naquele momento. Seja físico ou emocional, não seria uma escolha caso algum grau expressivo de sofrimento não estivesse o levando a buscar atendimento. A avaliação de necessidade de atendimento sob o olhar institucional e profissional quase sempre é bem diferente da percepção de quem busca o atendimento.

Além disso, cabe pensar que embora tais experiências possam parecer individuais, elas podem ser representativas (ou não) de fenômenos complexos e coletivos. E como podemos saber qual de fato é a realidade para que possamos transformá-la? Será que a experiência de atendimento é a mesma independente de classe social, raça/etnia e gênero?

Há 5 anos comecei a olhar para a saúde coletiva a partir dos serviços de urgência e emergência de Porto Alegre e é inimaginável o caráter pedagógico que o Sistema e a sociedade poderiam ter acesso caso fizessem cotidianamente da emergência um locus de observação, planejamento e gestão de políticas públicas.

As emergências fazem muito mais do que estabilizar pacientes e intervir em situações de risco à vida: as emergências criam o lugar para cada demanda e explicitam valores para a vida de cada pessoa que busca atendimento. Um bom exemplo é o atendimento dedicado às pessoas indígenas.

Segundo o censo de 2022, vivem em Porto Alegre hoje apenas 2.957 pessoas que se autodeclaram indígenas. A saúde indígena possui serviços próprios de atenção básica e é uma pauta prioritária e interministerial.

Contudo, pouquíssimo se olha para o que acontece com esta população quando ela sai do território indígena. No Pronto-Socorro Municipal, de 2020 a 2025, já foram feitos mais de 600 atendimentos de pessoas indígenas. Números semelhantes são vistos também no Pronto Atendimento Cruzeiro do Sul e em outros.

Fico pensando sobre a representação social que pessoas indígenas têm dos serviços de emergência e que situações poderiam as levar a estes serviços.

Sabemos que há limites impostos por desigualdade de classe social, gênero, raça/etnia que marcam a subjetividade destas pessoas e que episódios de discriminação institucional fazem com que muitos indígenas cheguem tardiamente às emergências, já com quadros agravados.

O genocídio histórico prossegue na atualidade. Haja visto o que se observou na pandemia em alguns territórios indígenas que perderam suas crianças, seus anciãos, seus provedores e boa parte da memória de sua cultura.

Alguém pode problematizar se realmente são indígenas ou quais suas etnias. Pode dizer que não faz diferença uma vez que a maior parte da população indigena de Porto Alegre é não aldeada, já perdeu muito de sua cultura, e que se encontra desvinculada da saúde indígena, o que leva a busca por serviços de emergência.

Pode questionar ainda a inconsistência dos dados, uma vez que o critério raça-cor deve ser uma condição auto-referida, que, no estresse de um cenário de emergência, pode sofrer erros por muitas razões: auto declaração equivocada, notificação por parte do profissional sem questionar ao paciente ou até mesmo erro de digitação.

Sim, todas as possibilidades são reais, contudo, o que é mais notável é que há falta de informações importantes, que, em pleno 2025, não podem mais ser negligenciadas, ainda que sob o argumento de que já foi muito pior ou de que é bem melhor do que em outros lugares.

Fala-se muito sobre diversidade, fala-se muito sobre o respeito da diversidade como uma consagração da cidadania, todavia, sabe-se que indígenas e transsexuais, por exemplo, possuem uma expectativa de vida menor do que o restante da população. E quando estas pessoas forem vítimas de violência, intolerância ou estiverem em sofrimento, precisam ser vistas e atendidas de forma digna, equitativa e adequadamente monitorada para que sofrimento e mortes precoces e evitáveis possam ser mitigadas.

Como poderemos monitorar o alcance das políticas públicas que se propõem a combater iniquidades caso não possamos saber precisamente raça/cor, etnia, orientação sexual, alerta de violências que possam ser comunicados em sistemas de informações interconectados entre diferentes serviços?

Itinerários terapêuticos de cuidado de segmentos deixados à margem do sistema tais com indígenas, população lgbt, pessoas em situação de rua e vítimas de violência precisam ser investigados e mínimas informações precisam estar disponíveis em todos os níveis do sistema.

Em outra pesquisa vimos que praticamente só centros de referência e emergências notificam violência no SUS, mas, este o sistema de notificação não dialoga quase nunca com os serviços de saúde e caberá a vítima reviver sua história contando muitas vezes o seu sofrimento em diferentes pontos da rede, isso se a violência for vista por alguém.

Emergências são lotadas, faltam leitos, falta valorização profissional, faltam muitas coisas. Mas, não há serviços de saúde e não há rede de atenção sem a população, a população é o seu propósito e desconhecer quem acessa e porque acessa é um erro elementar.

Não é porque um país é pobre que ele pode prescindir de informações e profissionais qualificados, é justamente por termos recursos limitados que precisamos de informações e profissionais qualificados.

Enquanto não conseguimos ampliar expressivamente os leitos de retaguarda que desafogariam as emergências, enquanto trabalhamos para desnaturalizar a desumanização do processo de trabalho nas emergências, precisamos entender que pequenos ajustes nos sistemas de informação hospitalar de Porto Alegre e de sensibilização dos profissionais sobre a importância da inclusão precisa de informações sobre raça/cor, etnia, orientação sexual, identidade de gênero, presença de indícios de violência e causa precisa da busca pelo atendimento, poderiam nos permitir entender quem são as pessoas mais vulnerabilizadas dentro da estrutura social que buscam cuidado nas emergências e quais os desfechos deste atendimento para que políticas públicas efetivas de proteção e mitigação de danos pudesse ser construídas.

Me pergunto, se para mim, que sou uma pessoa privilegiada, naquele domingo, voltei para casa com pontos e com uma sensação de exaustão, inadequação e pesar, o que acontece com os tantos que não podemos saber quem são? Que não podemos entender o que os levou até lá e nem como saíram de lá. Será que realmente são indígenas? Será que tiveram suas demandas atendidas? Será que realmente entendemos e respeitamos o que leva as pessoas, mesmo com tantas barreiras sociais, econômicas e históricas, a buscarem atendimento?

Só saberemos se e quando sistemas de informações e as pesquisas forem de fato inclusivos e quando profissionais de saúde forem oportunamente valorizados, capacitados e cobrados para operá-los adequadamente. Informações preliminares precisam ser auditadas quantitativamente e qualitativamente.

Relatórios municipais recomendam reestruturar os fluxos entre a APS e a emergência para evitar atendimentos repetitivos e internações recorrentes e essa precisa ser a meta, mesmo que tudo nos faça olhar para o copo meio vazio.

Mas, as primeiras informações já temos e o indicativo institucional de necessidade de mudança também, então, o caminho parece ser ampliar e qualificar informações. E fazê-las dialogar com as equipes dos serviços e com a população.

Gramsci dizia “O pessimismo é um assunto da inteligência; o otimismo, da vontade”.

Sigo acreditando no SUS e no dia que precisar de um atendimento de emergência, seguirá sendo o meu destino. Assim como da maior parte da população.

Que possamos avançar, com otimismo e vontade, qualificando a formulação de políticas públicas, sensibilizando gestores e profissionais ou, no mínimo, levando o debate adiante. 

*Aline Blaya Martins: Professora da Faculdade de Odontologia e do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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Last Update: 09/09/2025