A noção de extinção tem sido utilizada como mote central de diversos movimentos ambientais nas últimas décadas. Na Europa e nos Estados Unidos, um dos grupos mais influentes nesse campo hoje é o Extinction Rebellion (Rebelião da Extinção), que organiza ações de disrupção no cotidiano urbano com o objetivo de levantar a pauta da crise climática e, se possível, conquistar espaço na mídia tradicional para expor suas razões. No campo marxista, também surge o lema “ecossocialismo ou extinção”, trazendo uma leitura crítica sobre o conceito: extinção para quem? Quais classes sociais estariam mais expostas a esse destino? Apesar da pertinência, essas discussões muitas vezes se tornam alienantes com conjecturas de ricos que encontrariam refúgios em bunkers, ilhas privadas ou até mesmo em Marte, enquanto o restante da população enfrenta os piores impactos.
Mas talvez seja necessário deslocar o debate para além da ideia abstrata de extinção. O que está realmente em jogo, se os gases de efeito estufa não forem controlados e a temperatura média da Terra continuar subindo, não é a aniquilação súbita da vida humana, mas sim o colapso das condições que tornaram possível a forma de urbanização que conhecemos.
As enchentes no Rio Grande do Sul podem ser tomadas como exemplo do que está por vir. O próprio IPCC já alerta que eventos climáticos extremos tendem a se acumular em curtos períodos de tempo, gerando pressões múltiplas e simultâneas sobre territórios, populações e infraestrutura. As cidades e países — produtos de décadas e séculos de relativa estabilidade climática — não foram concebidos para suportar sucessivas ondas de enchentes, secas, furacões ou queimadas num intervalo tão curto.
O caso de Porto Alegre durante as enchentes ilustra de forma dramática como a infraestrutura urbana pode rapidamente caminhar para o colapso diante de eventos extremos acumulados. Houve um momento em que a sensação de falência total do papel do Estado deixou de ser apenas uma hipótese e se tornou uma possibilidade concreta. Sem energia elétrica — desligada para evitar descargas fatais nas áreas alagadas —, a cidade também perdeu o abastecimento de água, já que as estações de tratamento dependem de eletricidade para funcionar. O acesso à internet foi gravemente prejudicado, e em muitos pontos apenas redes via satélite garantiam alguma comunicação. Até mesmo a infraestrutura digital do governo gaúcho foi atingida, pois servidores localizados em subsolos de prédios no centro da cidade ficaram submersos, comprometendo os sistemas dos bombeiros e da polícia. Paralelamente, a logística de abastecimento foi interrompida: mercados e farmácias estavam prestes a ficar sem suprimentos, uma vez que a maioria dos acessos rodoviários à capital estava sob a água. Em meio a essa paralisia, emergiu um clima de instabilidade social, assaltos em áreas evacuadas se tornaram frequentes, enquanto em algumas comunidades o crime organizado assumiu papéis contraditórios: de um lado, organizando resgates e fornecendo apoio a famílias; de outro, promovendo saques e explorando a vulnerabilidade generalizada. Esse episódio evidencia que, sem apoio externo, a crise no Rio Grande do Sul poderia ter evoluído para um colapso ainda mais profundo, revelando as fragilidades do Estado brasileiro, cuja ausência já é realidade cotidiana em diversas regiões periféricas do país.
Diante dessa lacuna, as organizações políticas e sociais desempenharam papéis fundamentais: realizaram resgates de pessoas alagadas, organizaram cozinhas solidárias, promoveram mutirões de limpeza em locais afetados e articularam redes de suporte comunitário. No entanto, ocupar de forma permanente o espaço de serviços essenciais que deveriam ser garantidos pelo Estado é uma expectativa irreal, mesmo para coletivos altamente articulados. O nível de intervenção necessário para enfrentar desastres climáticos de forma recorrente exige planejamento estruturado e uso de recursos em escala. Isso passa, inevitavelmente, por medidas de expropriação e socialização de infraestruturas já existentes, para que possam ser mobilizadas rapidamente em situações de calamidade: meios de transporte ociosos convertidos em veículos de resgate, bombas agrícolas empregadas no escoamento de enchentes, ou mesmo servidores — inclusive estrangeiros — que possam hospedar serviços digitais vitais.
A Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDEC) aponta em seu artigo VI, que o estado de calamidade pública ocorre quando os desastres comprometem substancialmente a capacidade de resposta do poder público, a ponto de só poderem ser superados com auxílio de outros entes da federação. Mas, e se esses entes também estiverem em crise e não puderem prover auxílio? Situação que tende a se tornar cada vez mais comum diante da intensificação dos eventos climáticos extremos. É urgente um planejamento sistêmico de resiliência, não porque vamos só aceitar que o desastre vai vir, mas porque precisamos de coesão social mínima para continuar o processo de mitigar a pior face da crise climática e porque adaptar as cidades significa salvar vidas.
Esse colapso urbano se manifesta não apenas em termos materiais, como falhas em energia, transporte, saneamento e habitação, mas também em termos sociais e políticos. O desmonte de serviços públicos ao longo de anos de políticas neoliberais fragilizou ainda mais a capacidade de adaptação das cidades. E, além disso, a percepção coletiva do problema é distorcida pela combinação de negacionismo climático, propaganda financiada por interesses fósseis e pelo ecossistema de redes sociais que alimenta ressentimento e ódio em vez de soluções. Portanto, o que devemos temer não é tanto a “extinção” em si, mas sim a perda acelerada das condições que permitem a vida urbana tal como a conhecemos. O verdadeiro risco reside na inviabilização progressiva da vida em cidades moldadas por um clima estável, que hoje enfrentam o desafio de se reinventar diante de um planeta em rápida transformação.