A política da “motosserra” do presidente Javier Milei sofreu um revés significativo e, para muitos, previsível, nas eleições legislativas da província de Buenos Aires, realizadas neste domingo (7). O paladino do ultraliberalismo, que prometia varrer o peronismo do mapa argentino, viu seu partido ser fragorosamente derrotado na província que concentra 40% do eleitorado do país, um sinal inequívoco de que o povo argentino talvez não esteja tão animado com a receita “milagrosa” que vem sendo aplicada na economia pelo extremista de direita. A mesma preconizada pelo igualmente neoliberal Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo e fã incondicional do capitalismo predador de Buenos Aires.
Com 99% dos votos apurados, a coalizão peronista Força Pátria, liderada pelo governador Axel Kicillof, obteve expressivos 47,28% dos votos (3,82 milhões), enquanto o A Liberdade Avança, partido de Milei, que concorreu em aliança com o PRO de Mauricio Macri, amargou 33,71% (2,724 milhões de votos). A esperança de Mile de um empate técnico ou uma diferença mínima de cinco pontos percentuais, desfez-se diante da força peronista, que venceu em 6 dos 8 distritos provinciais.
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A derrota eleitoral vem em um momento delicado para o governo Milei, que enfrenta acusações de corrupção envolvendo a irmã do presidente, Karina Milei, no que a imprensa já apelidou de “karinagate”. O escândalo, que aponta para uma rede de propinas na compra de medicamentos para pessoas com deficiência, explodiu em meio a sinais claros de estagnação econômica, alta de juros e intervenção cambial, fazendo a popularidade de Milei cair para mínimos históricos de 39%. Nove em cada dez argentinos, segundo a pesquisa Trespuntocero, já têm conhecimento do caso.
“Estabilização” às custas da miséria do povo
Enquanto o Fundo Monetário Internacional (FMI) projeta uma queda da inflação para 35,9% em 2024 e um crescimento do PIB de 5,5% em 2025, a realidade no andar de baixo argentino mostra um doloroso quadro de desolação. A tão celebrada “correção econômica” tem sido alcançada às custas da miséria do povo argentino. Servidores públicos perderam seus empregos com uma redução de 10% no quadro estatal, e professores universitários enfrentam salários tão aviltantes que os impedem de continuar lecionando. A infraestrutura, incluindo estradas, também padece com a quase total eliminação de gastos em obras públicas.
Os aposentados, que compõem o maior gasto do Estado argentino com o sistema de previdência social, estão entre os mais prejudicados, pagando um preço altíssimo pela austeridade de Milei. Um relatório recente do Centro de Economia e Política Argentina (Cepa) revela que a perda do poder aquisitivo de aposentadorias e pensões representa 19,2% do ajuste dos gastos estatais em 2024, resultado de um processo de “diluição” (aumentos abaixo da inflação) e congelamento de bônus extraordinários.
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A saúde pública também agoniza. O Hospital Garrahan, principal hospital pediátrico do país, símbolo da excelência médica argentina, enfrenta o “desfinanciamento”, com médicos residentes em greve por receberm salários de menos de US$ 700 – bem abaixo da linha da pobreza.
Ataque à ciência
Famílias de pessoas com deficiência também protestam contra a suspensão em massa de aposentadorias por incapacidade e o congelamento dos valores pagos aos cuidadores desde novembro de 2024, apesar da inflação galopante. O governo Milei justifica as auditorias como combate a fraudes, mas as famílias acusam uma manobra para reduzir o financiamento da Agência Nacional para Pessoas com Deficiência (Andis).
Nem a ciência, motivo de orgulho nacional com seus cinco Prêmios Nobel, escapou da motosserra. O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação foi dissolvido, e os cargos reduzidos pela metade. A medida levou 68 vencedores do Nobel a expressar “preocupação” com a “dramática desvalorização da ciência argentina”, enquanto cientistas locais denunciam um verdadeiro “cientificídio”.
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“Fome e caos econômico”
A derrota acachapante em Buenos Aires chamou a atenção do líder do PT na Câmara, Lindbergh Farias (PT-RJ). O deputado não hesitou em se manifestar no X: “Milei prometeu ‘colocar o último prego no caixão do peronismo’, mas quem saiu derrotado foi o mileísmo. Nas eleições legislativas, o peronismo venceu com quase 20 pontos de vantagem em Buenos Aires, província que concentra metade do eleitorado argentino. Foi uma surra eleitoral que mostrou que o ultraliberalismo perdeu o respaldo das urnas.”
Farias concluiu com ironia, ecoando a percepção popular: “Um palhaço que já não faz rir”, como a imprensa argentina definiu Milei após o fracasso. O estelionato político de vender soluções mágicas e entregar fome e caos econômico agora cobra seu preço. A derrota em Buenos Aires é o começo do fim de um ciclo. A miséria falou mais alto do que as micagens e os dogmas de Chicago. O povo argentino começou a dizer: basta!”
O resultado das urnas na província mais populosa da Argentina serve como um alerta para os defensores da austeridade extrema e da desregulamentação total. Aparentemente, a receita de “sofrimento necessário” para o crescimento, tão propagandeada por alguns, não é o que o povo argentino deseja para o seu futuro. Nem o povo brasileiro, que tratou de mandar para casa o ministro-banqueiro Paulo Guedes, outro ferrenho defensor do neoliberalismo decrépito da chamada “Escola de Chicago”.
Da Redação, com Folha de S. Paulo e BBC Brasil