O Grito dos Dependentes

Por Gustavo Guerreiro*

Há imagens que, de tão eloquentes, dispensariam qualquer análise.

A fotografia dos atos deste Sete de Setembro é uma dessas: na Esplanada dos Ministérios, um mar de verde e amarelo. Na Avenida Paulista e na orla do Rio de Janeiro, era conspurcada por constelações de estrelas e listras. Bandeiras dos Estados Unidos (e algumas de Israel) tremulando, no dia em que deveríamos celebrar nossa soberania. Um oximoro visual.

Mas o drama vai além do simbolismo e revela uma trama mais sórdida.

As tarifas de 50% impostas por Donald Trump ao Brasil foram motivadas politicamente. Sob o discurso de uma retaliação explícita ao processo contra Jair Bolsonaro no STF, ele declarou que o “julgamento não deveria estar ocorrendo” e que é uma “caça às bruxas”, chegando a afirmar estar “muito desapontado com o Brasil” e que o governo brasileiro “foi para a esquerda de forma muito intensa”.

A interferência é tão descarada que Trump assinou decreto citando como justificativa uma “emergência nacional” devido ao tratamento dado a Bolsonaro, numa violação sem precedentes da soberania judicial brasileira.

Qualquer cidadão com o mínimo de senso crítico e conhecimento da realidade mundial e latino-americana sabe que não se trata de Bolsonaro, mas do protagonismo brasileiro, dos BRICS, dos mecanismos de inserção do Brasil na nascente ordem multipolar em que o Sul global ganha relevância.

Enquanto empresários brasileiros tentam reverter o tarifaço que já causou prejuízos bilionários, Eduardo Bolsonaro, morando nos Estados Unidos desde março, faz campanha por sanções ao Brasil.

O deputado, que deveria representar os interesses nacionais, circula pelos corredores do poder em Washington pedindo punições contra seu próprio país. Sua presença tem causado desconforto entre os próprios empresários brasileiros, que tentam negociar a reversão das medidas. É a sombra do “patriota” que pede socorro ao estrangeiro para destruir as instituições de sua própria nação.

O custo da submissão ideológica é claro nos números: com queda de 18,5% nas exportações para os EUA em agosto, o Brasil acumulou um déficit comercial de US$ 1,23 bilhão, o pior resultado mensal de 2023, segundo o MDIC.

Estados como o Ceará decretaram emergência, com mais de 90% de sua pauta exportadora afetada. Cidades inteiras, como Petrolina e Franca, veem seus empregos ameaçados.

E enquanto a economia nacional sangra, surge a pergunta incômoda: de onde vieram os recursos para hastear uma bandeira estadunidense de proporções monumentais na Avenida Paulista? Quem financia essa demonstração de subserviência? Que interesses estão por trás dessa exibição antipatriótica disfarçada de nacionalismo?

A dissonância cognitiva atinge níveis patológicos quando o mesmo movimento que se diz “patriota” celebra medidas que prejudicam diretamente a economia brasileira. Aplaudem tarifas que fecham fábricas, demitem trabalhadores e enfraquecem nossa balança comercial.

É a confissão tácita de que preferem ver o Brasil de joelhos diante de Trump do que próspero sob um governo democraticamente eleito.

Essa tática covarde se repete como um mantra do fracasso: sempre que perdem no campo político institucional, apelam para potências estrangeiras. Uma decisão contrária no STF? Pedem intervenção estadunidense. Uma derrota nas urnas? Rogam por sanções internacionais.

É o antipatriotíssimo em sua forma mais pura: negar a soberania nacional quando ela não serve aos seus propósitos políticos.

O recurso às bandeiras estrangeiras não é mero detalhe folclórico – é o ápice dessa fuga da realidade. A bandeira ali exibida não representa nem sequer os Estados Unidos, mas o trumpismo residual que vê na democracia um obstáculo. É a bandeira da derrota argumentativa, a confissão de que, sem muletas externas, o discurso já não se sustenta.

Ao empunhá-la, a extrema-direita não apenas trai seu país, mas se declara incapaz de disputar o futuro do Brasil com ideias brasileiras. É um atestado de incompetência política, uma rendição intelectual, uma declaração pública de que precisam de um padrinho imperial para legitimar seus delírios autoritários.

Antes de nos aprofundarmos nessa capitulação simbólica, é preciso dar um passo atrás e observar como o drama começou com a captura dos símbolos nacionais.

A camisa da seleção, a bandeira nacional, o hino cantado com a mão no peito, todo esse repertório cívico foi sequestrado e transformado em uniforme de uma única facção política. Um movimento que, ao se declarar o único e verdadeiro dono do patriotismo, excomunga da nacionalidade todos os que dele divergem.

E agora, em um passo além dessa usurpação, essa mesma facção, sentindo talvez que os símbolos pátrios já não bastam para sua cruzada, recorre a bandeiras estrangeiras. Essa escalada revela, de forma cristalina, o caráter fundamentalmente covarde, desonesto e oportunista da extrema-direita brasileira.

Diante dessa traição explícita aos interesses nacionais, o governo Lula tem mantido postura institucional firme, acionando a OMC e preparando medidas de reciprocidade econômica.

O Plano Brasil Soberano destinou R$ 30 bilhões para apoiar empresas afetadas. Como afirmou o presidente: “não aceitaremos desaforo, ofensas nem petulância de ninguém”.

A disposição do governo é clara: reverter os prejuízos causados por essa articulação traidora de maneira pacífica e institucional, através dos canais diplomáticos apropriados e do fortalecimento interno da economia. Não será através da submissão, mas da afirmação de nossa soberania que o Brasil superará este momento.

O que se viu, portanto, não foi uma celebração da Independência do Brasil, mas a mais cabal e explícita declaração de dependência. Uma subserviência não apenas a um Estado estrangeiro específico, mas a uma ideia de mundo, a uma afiliação a uma tribo ideológica transnacional que enxerga o Brasil não como pátria, mas como mero campo de batalha. Ali o manifestante se integra a um movimento global que vê na democracia um obstáculo a ser destruído.

É nesse ponto que a desonestidade do movimento se escancara completamente. A importação de símbolos serve a um propósito muito concreto: legitimar a ruptura institucional.

O cidadão que ataca o Judiciário de seu país sob a bandeira nacional já pratica um ato antidemocrático. Mas, ao fazê-lo sob a égide simbólica dos EUA de Trump, ele se sente parte de algo maior, uma cruzada do “bem” contra o “mal”. As bandeiras estrangeiras funcionam como salvo-conduto moral para destruir o pacto social brasileiro.

O paradoxo se aprofunda quando lembramos que a retórica desse grupo é, supostamente, nacionalista. Falam em defender a Amazônia e nossas riquezas.

Mas que soberania é essa que precisa ser tutelada por potências estrangeiras ou por movimentos ideológicos importados?

Que projeto de nação é esse que vê em seus próprios poderes republicanos um inimigo mais perigoso do que qualquer ameaça externa?

A verdade, nua e crua, é que este nacionalismo é uma casca oca, um simulacro. É a negação do pensamento de um Celso Furtado, a antítese do pragmatismo de um Barão do Rio Branco, o oposto da visão de país de um Darcy Ribeiro.

O que está em jogo, portanto, é a própria viabilidade do Brasil como nação autônoma.

A cena das bandeiras estrangeiras não é um detalhe folclórico; é o retrato de um movimento que, encurralado por suas próprias derrotas, está disposto a rifar o bem mais precioso que um povo pode ter: seu direito de decidir o próprio destino. É a cartada final de quem não tem mais argumentos, apenas símbolos e, mesmo estes, precisa importar.

Ao final do dia, quando o Dia da Independência é usado para celebrar a dependência externa; quando símbolos nacionais são capturados de forma oportunista e, em seguida, trocados por estrangeiros como confissão de fraqueza; quando a dissonância cognitiva se torna a principal estratégia política, resta a pergunta que deveria incomodar a consciência brasileira: a quem serve o “patriota” de hoje?

Que projeto de nação é esse que prefere ver fábricas fechadas, empregos perdidos e a economia em frangalhos, desde que isso prejudique um governo democraticamente eleito?

Que amor à pátria é esse que se expressa através da bandeira de outra nação, que celebra quando potências estrangeiras punem o Brasil, que aplaude um deputado que mora no exterior fazendo lobby contra os interesses nacionais?

O “patriota” de hoje não serve ao Brasil, serve ao ressentimento. Não defende a soberania, mendiga intervenção. Não constrói, destrói. Não ama a pátria, odeia a democracia.

O nome disso não é patriotismo. O Código Penal tem uma palavra mais precisa para quem trabalha contra os interesses de seu próprio país em favor de potência estrangeira: traição.

*Gustavo Guerreiro é doutor em políticas públicas e pesquisador do Observatório das Nacionalidades.

Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Last Update: 08/09/2025