da ConJur
A anistia dos crimes contra o Brasil
por Eduardo Appio*
O conceito dogmático de proteção penal insuficiente vem da obra do italiano Luigi Ferrajoli, quando nos ensina que a Constituição proíbe qualquer atentado contra o sistema de proteções do Estado democrático de Direito.

O sistema de garantias constitucionais no Brasil veda a derrogação pura e simples das normas penais que proíbem golpes de Estado no Brasil.
Com a aproximação do Dia da Independência, nunca é demais lembrar que as disposições penais que protegem a democracia foram criadas a partir de um triste histórico de autoritarismo no país.
O projeto de lei protocolizado pelo deputado federal Gustavo Gayer (PL-GO), dentre outros, afronta inúmeros dispositivos de nossa Constituição ao anistiar os crimes que chocaram a nação em 8 de janeiro de 2023.
A Constituição impõe a todos os parlamentares o dever de legislar de forma a proteger direitos e garantias do cidadão. A abolição violenta do Estado Democrático de Direito é o mais grave dentre todos os crimes previstos em nossa legislação.
Não há espaço para o retorno de uma ditadura militar no Brasil em pleno século 21. Os congressistas poderiam colocar suas energias em favor de propostas que coloquem o Brasil na vanguarda da tecnologia de maneira a assegurar bons empregos para os nossos jovens. Como responder aos desafios da inteligência artificial e da automação no mercado de trabalho?
O simples fato de que a lei não pode estabelecer diferenças entre os cidadãos brasileiros, conforme o artigo quinto da Carta de 1988, já deveria ser suficiente para impedir uma criativa tentativa de conceder insustentável privilégio em favor daqueles que infringiram o Código Penal.
O Supremo Tribunal Federal também não aceita qualquer atentado às cláusulas pétreas da Constituição de 1988, uma das quais não permite a revogação de direitos e garantias individuais. Ainda que o STF admita reduzir determinadas proteções da cidadania, como já fez na ADI 3.105, toda a jurisprudência da Suprema Corte rejeita que se aniquilem direitos individuais dos cidadãos.
O controle de constitucionalidade de um projeto de lei de anistia ampla deve ser feito pela própria Câmara dos Deputados, através de sua comissão de Constituição e Justiça. Caso aprovado um projeto de lei manifestamente inconstitucional, caberá ao presidente da República vetar esta folclórica tentativa. O Supremo Tribunal Federal somente será chamado a decidir se todas as instâncias da política representativa falharem.
Criminosos do 8 de Janeiro não estão acima da lei
O sistema representativo clássico, desde a Revolução Francesa, ampara se na fé de que o Congresso Nacional tem o poder de criar novas leis a partir do chamado Contrato Social (Rousseau), segundo o qual ninguém pode se escusar de cumprir o Código Penal.
Uma revogação das disposições penais que protegem a democracia e o próprio Congresso significaria uma ofensa clara ao princípio da separação dos Poderes. A Câmara dos Deputados estaria anulando julgamentos do Poder Judiciário com o objetivo de imunizar aqueles que atentaram contra o resultado das urnas.
Finalmente, haveria uma ofensa ao chamado princípio da proporcionalidade, o qual tem sido fonte e critério para controle de constitucionalidade no Brasil. Esse princípio determina que as leis aprovadas pelo Parlamento guardem correspondência com uma finalidade de proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos. A maior prioridade possível em um Estado democrático de Direito é a sua manutenção. A finalidade do projeto de lei apresentado pelo deputado Gayer é claramente divorciada das intenções que guiaram os constituintes brasileiros.
Trata se de criar um estatuto jurídico que coloca algumas poucas pessoas acima da Constituição de 1988, condenando todos os demais 213 milhões de cidadãos brasileiros a um estado de anemia em matéria penal que certamente incentivaria novas tentativas de golpes de Estado.
A simples discussão de um projeto de lei dessa natureza, ainda que fundada na liberdade política do Parlamento, servirá para causar aquilo que Lowestein chama de erosão da consciência constitucional. Nossos filhos e netos não merecem este vergonhoso legado. O ceticismo político se alimenta de iniciativas que não respeitam a cidadania.
*Eduardo Appio é juiz federal em Curitiba e pós-doutor em Direito Constitucional.
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