O Festival de Veneza registrou, nesta quarta-feira (3), uma de suas noites mais intensas. A estreia mundial de The Voice of Hind Rajab (A Voz de Hind Rajab), da tunisiana Kaouther Ben Hania, foi recebida com 23 minutos de aplausos de pé, o mais longo da história do evento. O feito ultrapassou o recorde de O Labirinto do Fauno (2006), exibido em Cannes e aplaudido por 22 minutos.

The Voice reconstitui os últimos momentos de Hind Rajab, menina palestina de 6 anos morta com parentes e dois paramédicos em Gaza, em janeiro de 2024, quando o carro da família foi atingido por disparos israelenses. Mais do que uma obra de denúncia, tornou-se símbolo de um cinema que se põe no centro da disputa política sobre Gaza.

Do trauma à linguagem universal

A narrativa mescla ficção, gravações reais e dramatização para mostrar a agonia de Hind, que implorou por socorro em ligações registradas pelo Crescente Vermelho. O filme não se limita a um retrato pessoal: sugere que a voz da criança é também a de milhares de palestinos mortos nos últimos dois anos.

A recepção emocionada em Veneza, com bandeiras palestinas erguidas na sala e gritos de “Palestina livre”, evidencia a força de uma obra que conecta cinema, ativismo e direitos humanos em escala global.

Hollywood se envolve e amplia alcance

A produção atraiu nomes de peso como Joaquin Phoenix, Rooney Mara, Brad Pitt, Alfonso Cuarón e Jonathan Glazer, que se associaram ao projeto como produtores-executivos. A presença dessas estrelas garante visibilidade e desafia a barreira de distribuição que costuma limitar filmes críticos a Israel nos Estados Unidos.

Em coletiva, Ben Hania foi direta: “A voz de Hind é a voz de Gaza pedindo ajuda. Quando ouvi aquela gravação, senti raiva e impotência — sentimentos que me levaram a fazer este filme”.

A nova vaga de cinema palestino

O sucesso em Veneza confirma uma tendência: o cinema palestino e sobre a Palestina ocupa hoje um espaço central no circuito internacional. Em março, o documentário No Other Land, sobre a Cisjordânia, levou o Oscar de Melhor Documentário, apesar das dificuldades de distribuição.

Agora, The Voice of Hind Rajab chega como forte candidato ao Oscar de Melhor Filme Internacional de 2026, reforçando um movimento em que o cinema se converte em campo de disputa simbólica sobre a guerra em Gaza.

Entre arte, política e memória

The Voice of Hind Rajab é um thriller de headset (todo centrado em diálogos telefônicos). O tenso longa foca em pessoas presas em suas mesas falando ao telefone com alguém em perigo. Este não é um mero exercício de gênero; está enraizado em uma história bem documentada com significado geopolítico profundo e angustiante.

Dentro do compacto tempo de execução do filme, a roteirista e diretora Ben Hania traça as horas tensas e torturantes de 29 de janeiro de 2024, quando voluntários do Crescente Vermelho Palestino na Cisjordânia tentaram acalmar uma menina de 6 anos apavorada e levar uma ambulância até ela em Gaza. O gerente do escritório no filme explica sucintamente a situação para outra agência: Hind Rajab está “presa em um carro com os cadáveres de sua família. Cercada por tanques e bombardeios”.

Críticos descrevem o filme como um “urgente procedimento cinematográfico”, que conjuga a ética do testemunho com a estética do choque. Para uns, trata-se de um marco artístico; para outros, uma polêmica inevitável. O certo é que Ben Hania colocou o público diante de uma pergunta inescapável: como o mundo permitiu que uma criança implorasse pela vida e fosse silenciada?

Mais do que um recorde de aplausos, The Voice of Hind Rajab inaugura uma nova fase em que o cinema não apenas retrata a tragédia palestina, mas se torna um ator político global na disputa por narrativas sobre genocídio, direitos humanos e impunidade internacional.

O cinema virou um dos principais palcos da disputa sobre Gaza

O sucesso estrondoso de The Voice of Hind Rajab em Veneza não é um caso isolado. Nos últimos anos, o cinema se transformou em um dos territórios mais visíveis de disputa simbólica sobre a guerra em Gaza — tanto em premiações quanto no mercado de distribuição.

  • Oscar como vitrine global – Em 2024, o documentário No Other Land, sobre a ocupação israelense na Cisjordânia, venceu o Oscar de Melhor Documentário, marcando a primeira estatueta entregue a um filme palestino. A vitória foi interpretada como um gesto político da Academia, ao dar centralidade à narrativa palestina em plena escalada do conflito.
  • Festivais como arenas de legitimidade – Veneza, Cannes e Berlim têm dado espaço a obras críticas a Israel e solidárias aos palestinos. Aplaudir por minutos a fio — como ocorreu agora com Hind Rajab — não é apenas emoção artística, mas também um ato de legitimação política perante a opinião pública internacional.
  • Embates na distribuição – Se os festivais e a crítica celebram essas obras, o mercado mostra resistência. Filmes palestinos premiados muitas vezes não conseguem distribuição nos EUA ou em grandes plataformas, seja pelo lobby pró-Israel, seja pelo receio das empresas de sofrerem boicotes e campanhas de difamação. Esse bloqueio acaba tornando o Oscar e Veneza ainda mais estratégicos para furar a barreira do silêncio.
  • Cinema como memória e denúncia – Diferente do noticiário, o cinema trabalha com emoção, tempo narrativo e identificação do público. Em casos como o de Hind Rajab, o gênero do thriller aumenta a empatia do espectador e transforma uma tragédia localizada em símbolo universal da violência contra inocentes.

Assim, festivais e premiações se consolidam como campos de batalha culturais, onde o reconhecimento de filmes palestinos equivale a uma vitória política e simbólica em meio à guerra de narrativas.

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Last Update: 05/09/2025