“Me cobra que eu respondo, nem que seja embarcando!”, escreveu o vocalista Rodrigo Lima, em mensagens trocadas pelo celular com a reportagem do Portal Vermelho. Fundador e linha de frente de uma das mais cultuadas bandas brasileiras de hardcore, o Dead Fish, ele estava no caminho para entrar em um avião rumo a Lisboa, em Portugal, onde vai se apresentar neste sábado (6) no palco 25 de abril, o principal da Festa do Avante 2025.
A entrevista, então, teve o feito inédito de ser realizada em dois países. As primeiras duas respostas chegaram ainda no Brasil. “O restante vou fazer agora durante o voo”. E 10 horas depois, quando já estava em solo lusitano, o celular apitou com as demais perguntas respondidas. Correria de quem nos últimos tempos subiu no palco do Lollapalooza, fez uma apresentação triunfante na Flipei, no Armazém do Campo do MST, e acabou de tocar em Curitiba e São Paulo no evento “I Wanna be tour”, junto a bandas internacionais como Fall Out Boy e Good Charlotte.
Deu para sentir a energia dos seus dedos batendo freneticamente o teclado ao digitar suas ideias e reflexões sobre a oportunidade de tocar em um dos maiores eventos das esquerdas do mundo, a importância da música e da cultura na luta contra o fascismo e o papel do artista na trincheira dessa batalha para barrar a extrema direta, seja no Brasil ou em Portugal.
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Rodrigo tem 52 anos, mas em cima do palco parece ter o mesmo gás dos 20 e poucos de quando fundou a banda, em 1991, em Vitória no Espírito Santo. Porém, nestes anos todos, segundo ele, algumas coisas mudaram. O seu “corpo mal-humorado” e a sua rede social fechada tiveram que ser deixados para trás. “Acho que depois do nascimento da minha filha muita coisa aconteceu, quando o fascismo venceu 2018 no Brasil e durante a pandemia muita coisa também aconteceu”, lembra.
Os amigos Thunderbird e Marcelo D2, então, o chamaram num canto e disseram que não dava mais para ficar sem botar a cara nas mídias. Hoje, Rodrigo, que sempre se expressou pelas letras das suas músicas, expandiu o raio de politização das suas ideias. Fala mais, dá mais entrevistas, participa de mais programas, ocupa mais espaços.
“Tem sido uma experiência muito rica, não estar fechado na minha bolha estética e política, tenho visto, lido e ouvido muita coisa importante e até quando eu achar/acharmos que devemos, vamos ocupar espaços com nossa música e nossas ideias. Tento contribuir com meus centavos na luta emancipatória dos povos do mundo e, principalmente, do povo sul-americano que tanto sofre”, destaca.
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E será que existe um paralelo entre a longevidade da Avante, realizada pela militância, com o Dead Fish, banda que também sempre correu por fora do circuito comercial?
“Acho que o Dead Fish, com 34 anos, grosso modo, tem uma trajetória parecida com a Festa, muitos de nossos velhos fãs que nos acompanham estão aqui conosco e, de forma impressionante, muita gente mais nova tem chegado nos últimos anos. Acho que não parar de fazer música e ainda estar na estrada faz essa diferença, aquela coisa de estar sempre pelas bases, tocando onde é possível e fazendo com potência”, diz.
Para o show deste sábado, Rodrigo espera fazer bonito. “A gente tenta tocar no Avante faz uns anos, ficamos ultra felizes de vermos o Ratos de Porão tocar e os Garotos Podres tocarem em outro ano. Agora, seremos nós e queremos fazer tão bonito quanto eles. Corremos pra fazer e cá estamos, embarcando pra realizar mais um feito gigante da nossa carreira”, comemora.
Confira abaixo a entrevista completa:
Portal Vermelho – O Dead Fish é uma banda fortemente politizada, trazendo sempre temas muito importantes para as esquerdas, a classe trabalhadora, denunciando e combatendo desigualdades, desde o primeiro disco… Assim como acontece no Brasil, Portugal vive um momento de muito enfrentamento com a extrema direita e movimentos de caráter fascista, que cresceram muito e já ocupam grande espaço até no parlamento do país. Qual diferencial para a banda tocar em um evento como o Avante em relação a outros festivais comerciais e para outros públicos? Vocês acham que as letras do Dead Fish, que relatam a atual sociedade brasileira, também podem fazer sentido em Portugal neste período?
Rodrigo Lima – A gente sempre quer ocupar os espaços, as pessoas quando nos chamam para festivais, acredito eu, que saibam do que se trata um show do Dead Fish, a gente nunca faz algo diferente ou alivia quando estamos em algum festival ou cidade, tocar num festival radicalmente de esquerda é que é uma novidade para nós. Acredito que o que estamos vivendo no mundo hoje seja muito semelhante, o Brasil viveu um governo de extrema direita durante a pandemia e foi uma tragédia. Com essa profunda crise do capitalismo que vivemos mundialmente, um álbum como “Ponto cego” [lançado em 2019] faz todo sentido em Portugal de anos pra cá. Existem detalhes obviamente diferentes na política local, mas grosso modo é o fascismo se aproveitando de mais uma crise para expandir território.
Já ouvi e li em algumas entrevistas você dizer que, talvez, lá no começo da banda você tenha feito escolhas que possam ter influenciado para o tal do “não-sucesso-mainstream” do Dead Fish. Naquela época, você não estava disposto a fazer muitas concessões. E você era um cara mais, digamos, na sua, não tinha rede social, não dava tanta entrevista (ou não era procurado), não aparecia muito, a gente não sabia muito sobre o Rodrigo. Hoje, o Rodrigo está mais presente, participa de podcasts, toca em grandes festivais, ocupa espaços de maior evidência na mídia. Este Rodrigo aí é mais recente, certo? Eu vejo um Rodrigo feliz nas entrevistas, altivo, aquela coisa do Che mesmo, de endurecer sem perder a ternura. Você está vivendo uma das melhores fases da sua vida pessoal e profissional? Você hoje acha que é uma pessoa que tem mais o que falar, expor mais ideias, compartilhar sua trajetória? É uma necessidade falar dado o momento da conjuntura ou é uma vontade ou é tudo junto? Como você acha que um pouco de tudo o que já viu e tem vivido nesta linha trajetória pode contribuir para o debate sobre a política, a cultura e a formação de uma sociedade mais justa e igualitária?
Olha, já passei (passamos) por muitos momentos em trinta e tantos anos estando numa banda, de uma extrema juventude cheia de energia, uma grande curiosidade de ver o mundo e nenhuma pretensão de nada além de estar na minha cena no Espírito Santo, passando por um corpo mal-humorado e cheio de regras que eu, pessoalmente, nem acredito mais, indo até, talvez o que sou hoje depois do cinquenta. Ainda sou muito reservado, pode parecer que por conta da exposição em redes sociais e mídia que não, mas sou.
Acho que depois do nascimento da minha filha muita coisa aconteceu, quando o fascismo venceu 2018 no Brasil e durante a pandemia muita coisa também aconteceu. Me lembro muito fortemente de um fato que mudou tudo que foi quando o Luiz Thunderbird e o Marcelo D2 me chamaram na real me cobrando, com a sutileza que os dois têm, uma maior participação nas mídias. O Thunder me falou que eu sendo o que era não podia me dar ao luxo de ter minhas mídias sociais fechadas, estava todo mundo botando a cara e lutando do jeito que conseguimos contra aquela/essa bizarrice tosca terraplanista de extrema direita. Marcelo falou o mesmo já que ele naquele momento estava mega ativo e tomando porrada de tudo que é lado. E eles estavam certos, não podia me furtar a dizer o que pensava pra mais gente. Consultei minha companheira, falei com amigos próximos e com a banda que ia me tornar mais ativo ali aonde sempre fui menos entusiasta, digamos assim. Só que se eu ia botar a cara, teria que ser com potência, com energia que instigasse as pessoas, nem que fosse pra discordarem e fazer tudo isso com alegria, com algum humor, porque a tristeza e a morte certa já estava instaurada na falta de vacina, na extrema individualidade do ser liberal e seu cinismo inaceitável.
E cá estou, descobri muita coisa de 2018 pra cá, de Mark Fisher a Lukacs, que inclusive descobri faz menos de um ano. Tento contribuir com meus centavos na luta emancipatória dos povos do mundo e principalmente do povo sul-americano que tanto sofre, mas que não perde sua potência e sempre cria algo pra se manter vivo, tudo através principalmente da música e do punk/hardcore. Tem sido uma experiência muito rica, não estar fechado na minha bolha estética e política, tenho visto, lido e ouvido muita coisa importante e até quando eu achar/acharmos que devemos vamos ocupar espaços com nossa música e nossas ideias.
Neste debate cultural, inclusive, queria perguntar para você qual a importância da cultura na formação de um povo livre e capaz de tomar a suas próprias decisões, na formação de uma nação soberana. E como você, Rodrigo, encara a cultura na sua vida, no seu dia a dia, na criação do seu filho, da sua família. Como o acesso à cultura mudou a sua vida?
Essa é uma grande pergunta e me sinto muito certo da minha resposta por que como brasileiro nunca poderei dizer que muito de nossa unidade territorial, social e até linguística vem da nossa gigante e infinita cultura, da nossa criatividade para mesclarmos tradição com inventividade e tornarmos isso tão lindo. Abandonei todas as certezas da minha vida para seguir loucamente a arte e a música como motor da minha vida, e sendo brasileiro isso é ainda mais maluco. Pela arte consigo traçar um fio condutor quase coerente entre meus familiares que se foram, que estão aqui do meu lado aqui e agora, entre mim e minha cidade de origem e a que vivo hoje, a minha relação com a vivíssima língua portuguesa brasileira, consigo traçar até um mapa de minhas escolhas de vestuário e alimentares, tudo isso pela cultura daqui, se isso não é libertador eu, sinceramente, não sei o que pode ser. A indústria de base certamente é importante, a reforma agrária é inadiável, mas sem cultura e arte e música, não iremos a lugar nenhum nesse país e nem neste planeta.
A Festa do Avante também é um encontro mundial de movimentos e organizações das esquerdas, que se unem em lutas e causas comuns. Quais são as bandeiras internacionais que o Dead Fish fortalecerá, com a sua solidariedade, no palco do evento?
Sem dúvida, a revolução internacionalista e emancipatória de todos os povos, a causa palestina, a reforma agrária no Brasil, o antifascismo forte e unido no planeta e mais muitas outras. Estou bastante curioso para ver o encontro das pessoas, das organizações que estão consolidadas até as que começaram por esses anos, é uma oportunidade única que não tenho no Brasil e que quero muito poder vivê-la.
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(BL)