
Para onde vai a humanidade?
Perpetrado sob uma finíssima capa de democracia, o primeiro genocídio transmitido ao vivo pode indicar o que o futuro nos reserva e o que devemos temer (e combater).
por Aída Bueno Bastos
As potências ocidentais são guardiãs dos mais caros valores da humanidade, mantenedoras das mais ricas culturas, espaço de civilização e modelo para o resto do mundo, correto? Os acontecimentos em Gaza, um enclave de 365 quilômetros quadrados no oeste da Ásia, vêm despedaçando essas afirmações, convidando dolorosamente pessoas comuns, grandes empresas e governos, a repensar como veem o mundo e seus frágeis alicerces. Mais do que isso, o genocídio levado a cabo por Israel em Gaza hoje tem martelado em muitas cabeças uma das perguntas mais inquietantes para os humanos: o que será de nós?
Até 7 de outubro de 2023, a maioria ignorava – voluntária ou involuntariamente – o processo de limpeza étnica que ocorre em toda a Palestina ocupada desde 1948, a partir da criação do estado de Israel. Após aquele fatídico outubro e o subsequente genocídio da população cometido por Israel, inicialmente as pessoas se indignaram, mas aquele era um “conflito” (como a imprensa mundial tanto gosta de classificar) muito distante de suas próprias realidades. Neste setembro de 2025, entretanto, muitos já despertaram para a ideia de que Gaza “é um laboratório contemporâneo do autoritarismo e da barbárie para o resto das democracias e dos Estados de Direito”, como bem definiu Castor Mari Martín Bartolomé Ruiz, doutor em filosofia e professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
A ele perguntei como pode uma democracia agir assim, então Castor Ruiz lembrou que Adolf Hitlher foi eleito democraticamente e se utilizou da constituição de Weimar para decretar um estado de exceção. “Pode se dizer que Hitler perpetrou todas as atrocidades possíveis sem cometer uma ilegalidade jurídica contra o Estado de Direito, pois aplicou o estado de exceção total que a lei previa. Da mesma forma, o governo de Benjamin Netanyahu utiliza o dispositivo da exceção para agir com poderes absolutos sobre o povo palestino. Utilizando-se de uma violência extrema e inumana, que viola todas as convenções internacionais, até as convenções internacionais da guerra, mas dentro das ‘quatro linhas’ do estado de exceção”, avalia.
Em artigo intitulado “Os neoautoritarismos filofascistas: o novo ovo da serpente” (leia aqui), Castor Ruiz reflete que “os diferentes fascismos que assolaram o mundo se gestaram de modo lento e gradual dentro das próprias democracias, que viram surgir, gestar, nascer e crescer o ovo da serpente dentro delas como se fosse parte das próprias democracias tolerando a consolidação do autoritarismo”. O ovo da serpente, explica, “é uma metáfora que prenuncia o mal em gestação, antes de que nos atinja de modo fatal”, citando, entre outros, Israel e Estados Unidos como exemplos.
Gaza em números é gigantesca: são mais de 600 dias de genocídio que deixou, segundo a ONU, mais de 62 mil mortos, 18 mil deles crianças, 21 mil crianças com alguma sequela irreversível e 50 milhões de toneladas de entulhos. Ao mesmo tempo em que despedaça pessoas, prédios públicos e moradias, Israel também estraçalha a ideia – até então aparentemente consolidada – das vantagens que as potências do Ocidente têm a nos oferecer, desnudando o que realmente podemos esperar – e temer – dessas nações. Em seu artigo, Castor Ruiz alerta que movimentos de extrema-direita têm se tornado populares em vários países, todos articulados mundialmente como uma “internacional autoritária ou neofascista”. Em miúdos, o autoritarismo visto em Gaza pode bater à porta de qualquer país.
Refúgio humanitário ou limpeza étnica?
O presidente da Federação Árabe Palestina do Brasil (Fepal), Ualid Hussein Ali Mohd Rabah, ressalta que é o primeiro genocídio transmitido praticamente ao vivo. “Os israelenses anunciam as atrocidades que vão cometer, ninguém faz nada. Os próprios algozes anunciam o que fizeram nas redes sociais, pessoas comuns podem ver”, diz ele, acrescentando que o momento exige uma reflexão do que é, afinal de contas, o Ocidente. A Fepal, assim como organizações de representação do povo palestino e governos em várias partes do mundo, vivem o dilema de tentar socorrer a população de Gaza, sem entretanto ajudar a realizar o maior desejo de Israel: promover uma limpeza étnica na região.
Doutor em Direito Internacional e coordenador do Centro de Direito Global e Desenvolvimento da FGV Direito SP, o advogado Salem Hikmat Nasser, é considerado hoje um dos maiores estudiosos em mundo árabe e muçulmano do Brasil. Avalia que, de imediato, não há que se ocupar em ofertar o chamado refúgio humanitário aos palestinos. Os esforços devem se concentrar em “interromper o genocídio, fazer entrar alimentos e outros itens necessários em Gaza, iniciar a reconstrução. Enquanto isso não acontecer, não há como falar de outras soluções”.
“Antes de colocar em questão as políticas humanitárias dos Estados, devemos questionar a paralisia dos Estados e das instituições internacionais em relação a fazer cessar o genocídio. Há muito a fazer nessa direção que não está sendo feito. Se, no entanto, quisermos passar para uma avaliação da política de vistos, tenho a impressão de que há muitos obstáculos à saída dos palestinos de Gaza e um deles é, de fato, o risco de ajudarmos Israel e realizar um de seus objetivos principais”, alerta Salem Nasser.
Na visão do professor, o que ocorre na Palestina representa um grande desafio a um sistema que se pretendia guiado por valores universais, representados sobretudo pelos países ocidentais, Estados Unidos e Europa. “A incapacidade do sistema e suas instituições de responder ao genocídio em curso, de deter Israel, parece revelar a falsidade dos valores universais. Revela também, na medida em que sua paralisia decorre da resistência dos países ocidentais, a hipocrisia dessas potências”. Salem Nasser acredita que é uma ilusão defender a ideia de dois estados. “Agora está ainda mais claro que é algo impossível. O mundo não se mostrando capaz de interromper o absurdo agora, a tendência é de que vejamos uma corrida até o final, em que, ou Israel conseguirá o que busca, expulsando a maior parte dos palestinos de Gaza e também da Cisjordânia, ou Israel encontrará os limites do seu projeto sionista e começará a decair.”
Cauteloso quanto aos desdobramentos disso no futuro, avalia que o novo mundo, o novo sistema, vai depender do equilíbrio de forças ao final do processo. “Quanto à humanidade, eu diria que estamos falhando na prova tão definitiva a que Gaza nos submete. Estamos demonstrando que, se os governos e a imprensa dominante não apertam os botões da nossa solidariedade, demoramos em responder e o fazemos de modo insuficiente.”
O professor Castor Ruiz é mais incisivo quanto ao genocídio e suas consequências: “Gaza se torna um referente para todos os movimentos autoritários em escala internacional, já que percebem como é possível agir com violência impune dentro de um Estado de direito, contra populações consideradas indesejadas.” E avisa: “Se tudo isso ficar impune, se não houver uma punição do Tribunal Penal Internacional sobre os responsáveis desse genocídio, Gaza será o túmulo final da ética fundada nos princípios humanistas que alimentam, como última esperança, nosso tempo histórico”. Mais inflamada, recentemente viralizou nas redes sociais fala do sociólogo britânico David Miller, especialista em islamofobia, que prevê um “reich de mil anos” se Israel não for contido.
Na pior das hipóteses, a nós restará replicar a frase derradeira do Coronel Kurtz, o personagem enlouquecido do filme Apocalypse Now (1979): “O horror, o horror, o horror”. E iniciar esse novo ciclo da história humana com a primeira frase da música tema do mesmo filme, do grupo The Doors: “This is the end”.
Aída Bueno Bastos é jornalista, integra a diretoria do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Espírito Santo e participa da Frente Capixaba Pela Palestina e do Comitê Capixabas Pela Palestina.
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