
O Novo Feudalismo de Estado: de Silicon Valley a Washington
por Luciana Bauer e Gisele Agnelli
Nos livros de história, o feudalismo europeu aparece como um regime de fragmentação territorial, em que senhores de terra cobravam pedágios, tributos e lealdade em troca de acesso e proteção. O capitalismo moderno teria sido justamente a ruptura dessa ordem: a consolidação de mercados relativamente livres, mobilidade de capitais e a emancipação dos indivíduos frente às rendas compulsórias. Mas, como argumenta o economista Yanis Varoufakis, talvez estejamos regressando a uma forma de feudalismo, só que digital. Para ele, a era das big techs inaugurou um technofeudalismo. Amazon, Apple, Google e Meta não funcionam como empresas que competem em mercados abertos, mas como senhores de feudos digitais. Vendedores, anunciantes e usuários são obrigados a pagar pedágios digitais para participar de ecossistemas dominados por essas plataformas. Cada compra, cada aplicativo baixado, cada clique em publicidade é uma forma de tributo. A renda que antes emergia da competição de mercado converte-se em renda de plataforma, uma extração análoga ao censo feudal medieval.
Se no passado era o acesso a estradas e terras que se comprava dos barões, hoje é o acesso a servidores, algoritmos e redes que se paga aos novos senhores. A consequência é a redução da lógica capitalista clássica — baseada em concorrência e lucro produtivo — em favor de uma lógica rentista de captura. O capitalismo se dobra sobre si mesmo, cedendo espaço ao feudalismo digital.
Donald Trump, em sua trajetória política, parece instintivamente operar em registro semelhante. Seu uso de tarifas alfandegárias punitivas contra a China e até contra aliados europeus, durante seu governo, revela a mesma lógica: o acesso ao mercado norte-americano passa a depender do pagamento de um pedágio estatal. O comércio exterior deixa de ser regulado por regras multilaterais de mercado e passa a ser subordinado a uma espécie de senhorio territorial — neste caso, o Estado trumpista.
Se as big techs instauram um feudalismo privado sobre fluxos de dados e interações digitais, Trump esboça um feudalismo estatal, em que o comércio global é reconfigurado como campo de cobrança de tributos arbitrários. Nos dois casos, a promessa liberal da livre concorrência é substituída pela lógica medieval da portagem. Não importa se o tributo vai para Cupertino, Seattle ou Washington: o mercado deixa de ser espaço de trocas abertas e se converte em território cercado.
Essa tendência é reforçada pelo estilo de governo de Trump, que tentou gerir os Estados Unidos como se fossem sua própria corporação. No papel de CEO-autocrata, exigiu lealdade pessoal de subordinados, tratou instituições como obstáculos e transformou decisões de Estado em transações comerciais. O povo, nesse esquema, não é soberano, mas acionista minoritário sem direito de voto real. O país é administrado como uma marca, um ativo a ser monetizado e defendido contra concorrentes externos, com a retórica de “America First” servindo de slogan corporativo.
O vínculo entre plataformas digitais e segurança pública amplia ainda mais essa lógica feudal. Empresas como Palantir, Amazon Web Services e Google Cloud fornecem infraestrutura crítica para governos e polícias, controlando bancos de dados, inteligência artificial e vigilância. O monopólio de informação transforma-as em guardiãs de castelos digitais, cujas chaves são indispensáveis para que o Estado exerça seu poder de vigiar e punir. Quando a polícia local ou a agência federal dependem da tecnologia de uma corporação, o feudo privado se torna indispensável ao exercício da lei, invertendo a hierarquia: não é mais o Estado que regula a empresa, mas a empresa que viabiliza e avaliza o Estado.
No campo militar, a simbiose é ainda mais visível. Microsoft, Amazon e Google competem por contratos bilionários de nuvem e inteligência artificial para o Pentágono; Elon Musk decide, por conta própria, como e quando o sistema Starlink será usado em guerras como a da Ucrânia. As plataformas digitais tornaram-se novos vassalos armados, não com lanças, mas com satélites, algoritmos e servidores. São exércitos privados a serviço de Estados — mas com poder de veto, como senhores feudais que escolhem quando emprestar suas tropas. Essa fusão entre big tech e aparato bélico projeta o feudalismo digital para o coração da geopolítica.
O paralelo entre feudos digitais e feudos estatais não é apenas retórico. Ele revela um ponto de inflexão: o capitalismo global parece entrar em uma fase pós-liberal, em que tanto empresas quanto Estados operam não pela lógica da competição aberta, mas pela lógica da captura de fluxos. Quem quiser vender, falar, circular ou negociar deve pagar portagem a algum senhor — seja a Apple Store, seja a alfândega norte-americana.
O risco é claro. Democracias podem se transformar em autocracias gerenciais, onde a forma eleitoral se mantém, mas a substância é corroída pela lógica da propriedade. As plataformas digitais tornam-se feudos privados; os Estados, feudos territoriais. E a sociedade, em vez de livre mercado, se vê submetida a uma rede de pedágios e tributos que lembram menos Adam Smith e mais os barões do século XI.
A história como nos conta Le Goff sempre cria mecanismos para que as famílias ricas tenham mais proximidade com o poder (A Idade Média e o dinheiro). O que hoje se desenha não é um retorno ao feudalismo medieval, mas a emergência de um feudalismo tecnopolítico — a fusão de plataformas privadas e Estados soberanos em novas formas de dominação. Nesse arranjo, tanto o like, a viralização ou a tarifa são moedas de vassalagem. E, como sempre no feudalismo, os súditos pagam caro quando se opõe ao rei.
Luciana Bauer é advogada e fundadora do coletivo climático Jusclima e professora de Filosofia do Direito e Direitos Climáticos.
Gisele Agnelli – Socióloga com especialização em ciências políticas, graduada pela PUC-SP, pós-graduada em Marketing e em Gestão da Informação, ambos pela ESPM. Fundadora do #VoteNelas. Atualmente reside nos EUA e faz parte do Movimento de Lideranças Femininas do Partido Democrata, Hoosier Women Forward.
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