Um plano para o pós-guerra em Gaza, revelado pelo Washington Post neste domingo (31), prevê que os Estados Unidos administrem o enclave devastado pela guerra por pelo menos uma década, transformando-o em um polo de turismo e tecnologia enquanto promove a remoção em massa da população palestina. 

O documento de 38 páginas, chamado GREAT Trust, prevê que os mais de 2 milhões de habitantes sejam deslocados sob a justificativa de saídas “voluntárias”, em troca de compensações financeiras, ou confinados em zonas restritas durante a reconstrução.

A proposta, desenvolvida por israelenses ligados à Fundação Humanitária de Gaza (GHF), é apresentada como um projeto lucrativo para investidores, mas representa, para os palestinos, a institucionalização de uma política de expulsão e expropriação.

O prospecto obtido pelo Washington Post detalha mecanismos de incentivo financeiro para a saída dos palestinos. Proprietários de terras receberiam tokens digitais em troca dos direitos de reurbanização de suas propriedades. 

Esses títulos poderiam ser resgatados futuramente por apartamentos em uma das seis a oito novas “cidades inteligentes movidas por IA” planejadas para o enclave ou utilizados para financiar uma nova vida fora de Gaza.

Além disso, cada palestino que aceitasse deixar o território teria direito a US$ 5.000 em dinheiro, subsídios para quatro anos de aluguel e um ano de alimentação. 

O plano estima que cada partida voluntária representaria uma economia de US$ 23 mil para o fundo, em comparação com os custos de manter palestinos em zonas de “suporte vital” controladas durante a reconstrução.

O GREAT Trust foi elaborado pelos mesmos responsáveis pela GHF, organização que distribui alimentos em Gaza desde maio em coordenação com os militares israelenses e empresas privadas norte-americanas de segurança. 

O histórico da fundação, no entanto, é marcado por controvérsias: segundo a ONU, mais de mil palestinos foram mortos tentando receber ajuda em seus pontos de distribuição, a maioria baleada por soldados israelenses.

Ao incorporar a lógica da GHF em um plano de longo prazo, o GREAT Trust amplia as críticas de que se trata de uma iniciativa de caráter colonial, que busca legitimar a remoção da população palestina ao mesmo tempo em que abre espaço para megaprojetos bilionários. 

O documento afirma que o fundo não dependeria de doações, mas seria financiado por investimentos público-privados, garantindo lucros aos investidores enquanto se desenha o deslocamento de um povo inteiro.

A Riviera sobre as ruínas de Gaza

O plano do GREAT Trust apresenta Gaza não como um território palestino devastado pela guerra, mas como um espaço a ser transformado em vitrine para grandes investidores internacionais. 

Nas páginas do documento, o enclave aparece redesenhado como uma “Riviera do Oriente Médio”, com resorts de luxo à beira-mar, ilhas artificiais semelhantes às construídas em Dubai, arranha-céus residenciais e parques de alta tecnologia.

As projeções incluem uma zona industrial “inteligente” ao longo da fronteira leste com Israel, destinada a abrigar fábricas de veículos elétricos e centros de dados regionais. 

No extremo sul, seriam construídos um novo porto e aeroporto, integrados por estradas modernas à infraestrutura do Egito, de Israel e da Arábia Saudita. 

Parte desses megaprojetos carrega nomes de líderes árabes: uma rodovia circular apelidada de “Rodovia MBS”, em referência ao príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman, e uma estrada norte-sul batizada com o nome do presidente dos Emirados, Mohammed bin Zayed.

O financiamento inicial seria garantido pela apropriação imediata de cerca de 30% das terras de Gaza, classificadas como “públicas” pelos autores do plano. 

Em notas marginais dos documentos internos, os próprios elaboradores reconheceram o risco de que a operação fosse vista como expropriação de terras, mas ainda assim mantiveram a proposta como “a maior e mais fácil fonte de colateral”.

Com base nesse arranjo, os cálculos do fundo estimam um retorno quase quatro vezes maior em dez anos sobre um investimento inicial de US$100 bilhões. 

A promessa é de um fluxo contínuo de receitas “autogeradas”, provenientes dos megaprojetos que iriam da construção civil às indústrias tecnológicas. O documento chega a projetar a criação de 1 milhão de empregos em um território hoje reduzido a ruínas, sem água potável, energia elétrica ou hospitais em funcionamento.

Uma visão colonial com comparações históricas

Os autores do plano não escondem o caráter colonial da proposta. Para justificar a administração direta de Gaza pelos Estados Unidos, compararam o GREAT Trust aos protetorados norte-americanos no Pacífico depois da Segunda Guerra Mundial e ao papel desempenhado por Douglas MacArthur no Japão e por George Marshall na Alemanha. 

A analogia reforça a ideia de que a Faixa de Gaza seria tratada como um território sob tutela, à espera de uma “reforma” antes de ser entregue a uma autoridade local moldada aos interesses externos.

O documento prevê que Gaza seja administrada por pelo menos 10 anos sob controle norte-americano, até que uma “entidade palestina reformada e desradicalizada” esteja pronta para assumir o poder. 

Essa futura estrutura de governo, segundo o texto, deveria se integrar aos Acordos de Abraão, firmados por Trump em seu primeiro mandato para normalizar relações entre Israel e alguns países árabes. Não há qualquer menção à criação de um Estado palestino.

Nos primeiros anos, a segurança do território seria garantida por contratados militares privados “ocidentais” e por nacionais de terceiros países, com atuação progressivamente reduzida até a transferência para uma “polícia local treinada”. 

Israel manteria, no entanto, direitos gerais de segurança para intervir sempre que julgasse necessário. O arranjo é descrito como um mecanismo temporário, mas que na prática consolida a exclusão palestina das decisões sobre seu próprio território.

Ao apresentar Gaza como uma peça central de uma região “pró-americana”, o plano a insere em um desenho geopolítico maior, que fala em acesso a recursos energéticos, minerais estratégicos e corredores logísticos regionais. 

Dessa forma, o projeto deixa de ser apenas uma proposta de reconstrução e se afirma como um projeto de dominação econômica e política, onde a população palestina é reduzida a variável descartável.

Reação palestina e novas restrições de vistos

As propostas de expulsão em massa já despertaram forte repúdio entre palestinos. “Eu me recuso a ser levado para outro país, muçulmano ou não. Esta é a minha terra natal”, afirmou Abu Mohamed, de 55 anos, ao Washington Post

O palestino sobrevive em Gaza em uma casa parcialmente destruída em Khan Younis. Sua fala ecoa a indignação de organizações humanitárias que classificam o plano como uma tentativa de disfarçar a limpeza étnica sob a aparência de partidas voluntárias.

Enquanto o prospecto do GREAT Trust circula, a administração Trump adota medidas concretas para isolar os palestinos também no exterior. 

No domingo (31), o New York Times revelou que Washington suspendeu a emissão de quase todos os vistos de visitante para portadores de passaporte palestino. 

A medida impede viagens para tratamento médico, estudos universitários, visitas a familiares e atividades comerciais, atingindo tanto palestinos da Cisjordânia quanto da diáspora.

O Departamento de Estado confirmou a decisão e ordenou que consulados apliquem a seção 221(g) da Lei de Imigração e Nacionalidade de 1952 para recusar em massa os pedidos. 

A ordem atinge inclusive o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, e cerca de outros 80 dirigentes, proibidos de viajar para a Assembleia Geral da ONU que ocorrerá em setembro. 

O gabinete de Abbas expressou “profundo pesar e espanto”, pedindo a reversão da medida.

Ex-funcionários dos EUA criticaram a decisão. Hala Rharrit, que deixou o Departamento de Estado em protesto contra a política para Gaza, classificou a medida como uma “recusa em aberto”. 

Especialistas em imigração afirmam que se trata de uma decisão política, destinada a apoiar a posição de Israel e a impedir que vozes palestinas denunciem o massacre em fóruns internacionais. Para milhares de famílias com parentes nos Estados Unidos, a decisão representa mais uma camada de separação e injustiça.

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Last Update: 01/09/2025