“Hei de vê-lo voltar, o meu doce consolo, meu filho. Passam-se anos, o véu do esquecimento baixando sobre as coisas tudo apaga. Menos da mãe, no triste isolamento, a saudade que o coração esmaga.” Os versos atribuídos a uma mulher que teve o rebento morto na Guerra do Paraguai foram vocalizados por mais de 40 anos por dona Elzita Santa Cruz, morta aos 105 sem conseguir oferecer um funeral digno ao filho, o estudante de Direito Fernando Santa Cruz, desaparecido político. Há exatos 50 anos, a família aguarda informações sobre o destino do militante da Ação Popular, sequestrado juntamente com o amigo Eduardo Collier Filho. Os dois foram vistos pela última vez em 23 de fevereiro de 1974, em Copacabana, no Rio de Janeiro.

As histórias de Santa Cruz e Collier se cruzam com aquelas de outros 208 desaparecidos sob análise da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, recriada no início deste mês pelo presidente Lula, depois de ter sido extinta no apagar das luzes de 2022 por Jair Bolsonaro. A comissão foi instituída pela Lei 9140, de 1995, no governo Fernando Henrique Cardoso, e não poderia ter sido encerrada por decreto, como fez Bolsonaro. Desde março do ano passado, o documento para a reinstalação da comissão estava pronto, à espera da assinatura de Lula. A decisão demorou, mas saiu em 4 de julho último, às vésperas do julgamento do caso de Eduardo Collen Leite na Corte Interamericana de Direitos Humanos.

“Antes tarde do que mais tarde”, resume Rogério Sottili, diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog

Rogério Sottili, diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog, celebrou o retorno da comissão. “Antes tarde do que mais tarde. Chegamos até a imaginar que não teríamos esse momento, o que seria muito ruim, porque demorou um ano e meio desde o início deste governo, gerando um certo sofrimento aos familiares dos mortos e desaparecidos políticos. E ainda tinha uma dúvida sobre como o governo reage às sistemáticas ameaças à democracia, que alimenta toda uma cultura de violência que assassina diariamente milhares no Brasil”, diz. “Embora o foco esteja muito dirigido para a localização e identificação dos corpos, a comissão também é um sinal de que o Estado está preocupado em trazer à luz os problemas do passado e em assumir a responsabilidade sobre a violência cometida em todos os processos históricos.”

Irmão de Fernando, Marcelo Santa Cruz descreve a angústia da espera por informações. “No início, a gente fez busca para saber se ele tinha sido preso e em que circunstâncias. Depois veio a fase da denúncia, de mostrar que ele estava desaparecido e foi morto pelos órgãos de segurança. Só com a Comissão da Verdade é que apareceram algumas pistas em relação ao sequestro, desaparecimento, prisão, assassinato sob tortura e a ocultação do cadáver. Isso é um dos crimes mais perversos, pois não se consegue materializar a morte”, descreve. “Na nossa família, fui cassado e expulso da faculdade, minha irmã Rosalina ficou presa 45 dias, foi barbaramente torturada, ela e o marido, mas quando veio o desaparecimento de Fernando, todas essas questões passaram a ser secundárias. A gente estava ali para contar a história e mamãe dizia: ‘E Fernando, que teve a vida interrompida aos 25 anos?’”

Criar versões para atrapalhar as buscas das famílias era uma das estratégias do regime. Os familiares do ex-deputado Rubens Paiva até hoje não sabem o que de fato aconteceu depois de o parlamentar ter sido capturado em sua própria casa, em 1971, ao lado da mulher, Eunice, e de uma das filhas, Eliane, à época com 15 anos. As duas foram liberadas dias depois. Segundo uma das versões, Paiva teria sido torturado até a morte nas dependências do DOI-Codi, na Barra da Tijuca, e o corpo enterrado, primeiramente, no Alto da Boa Vista e, depois, no Recreio dos Bandeirantes. Outra versão dá conta de que os restos mortais teriam sido jogados ao mar. “Quando foi divulgado que o corpo tinha sido retalhado e jogado no mar, fomos para a praia, entramos no mar, fizemos uma homenagem ao nosso pai, um pouco aliviados e felizes e, de alguma maneira, honrando sua memória em um lugar. Mas essa versão é negada. Isso faz parte do ato explícito do desaparecimento, que é continuar torturando e ameaçando as famílias para o resto da vida, colocando as famílias e amigos num lugar de pânico, medo e sofrimento”, lamenta Vera Paiva, filha de Rubens Paiva e integrante da comissão.

Vazio. Paiva, Alves e Santa Cruz continuam desaparecidos. Amparo Araújo ainda busca informações sobre um dos companheiros – Imagem: Acervo Família Santa Cruz, Fabíola Mendonça, Secretaria da Cultura/GOVSP e Memorial da Resistência/GOVSP

Leonardo Alves não conheceu o avô, Mário Alves, ex-dirigente do PCB preso duas vezes, em 1964 e 1970. Na segunda detenção, o militante foi levado ao ­DOI-Codi do Rio e torturado até a morte. Assim como outros casos, é incerto o paradeiro do corpo. “Testemunhas revelaram que ele foi submetido a todo o repertório de tortura e os torturadores tentavam arrancar informações sobre a mulher e a única filha dele, minha mãe. Ele despistava, não revelava, deixando claro que deu a vida não só pela democracia, pela liberdade do País, mas também por elas”, afirma o neto. “A última vez que meu avô foi visto, estava embalado, já moribundo, agonizando, depois das torturas. O Exército tem que dar conta do que aconteceu, porque o corpo ficou sob a custódia dos militares. Para isso, a Comissão de Mortos e Desaparecidos voltou.”

Rose Rodrigues também sente na pele o efeito transgeracional da violência praticada na ditadura. Sua tia, Ranúzia Rodrigues, ex-integrante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, codinome Florinda, saiu para uma reunião, em 1973, e nunca mais voltou à pensão onde estava hospedada no Rio de Janeiro. Tinha 28 anos e era mãe de uma menina que manteve fora do alcance da repressão. “As circunstâncias da morte não foram reveladas, a gente só sabe mentiras e suposições que surgiram nas investigações da Comissão da Verdade. Não existem documentos, pois a prisão foi ilegal. Há suspeitas de que ela foi levada para a Casa da Morte.” Em 2001, a família foi chamada a fazer um teste de DNA com os restos mortais encontrados em uma vala, mas o exame não foi conclusivo.

Amparo Araújo: “Temos o dever divino e o direito inalienável de enterrar nossos mortos”

A ex-militante da Aliança Libertadora Nacional Amparo Araújo teve dois ex-maridos sequestrados pelo regime. Um deles, Luiz José da Cunha, desapareceu em 1973 e teve os restos mortais encontrados e devolvidos à família em 2005. Estava numa das valas clandestinas do cemitério de Perus. Thomaz Antônio da Silva Meirellis Neto continua desaparecido. Foi sequestrado em maio de 1974, possivelmente no terminal do Leblon, no Rio. “Temos o dever divino e o direito inalienável de enterrar nossos mortos. A gente está num velório há mais de 50 anos”, lamenta Araújo, que também perdeu um irmão. Para ela, o presidente Lula tem poder e condições de cobrar do Exército a abertura dos arquivos da ditadura, com o intuito de esclarecer os anos de terror. “Os militares têm uma sistemática de trabalho altamente hierarquizada e supostamente organizada, tem tudo registrado nos arquivos. Então, além de ser reinstalada a comissão, é preciso que os arquivos sejam abertos. Eles existem e é obrigação do Estado brasileiro apresentar isso à sociedade.” Araújo acrescenta: “É preciso uma política pública que comece nas escolas para que a verdadeira história seja ensinada para as crianças, para os adolescentes, para que, ao se tornarem adultos e responsáveis, possam garantir que isso nunca mais volte a acontecer. O Estado tem de criar uma ‘política do nunca mais’, uma garantia para que isso nunca mais aconteça”.

Um dos grandes desafios da comissão é trabalhar com um orçamento diminuto. Neste ano, por conta do trabalho suspenso, foram destinados ínfimos 500 mil ­reais. Ainda não há uma dotação orçamentária para 2025. Segundo Nilmário Miranda, chefe da Assessoria Especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade do Ministério dos Direitos Humanos, está em fase de execução um memorial da democracia na Casa da Morte. Estuda-se um destino semelhante à ­Usina ­Cambahyba, em Campos dos ­Goytacazes, usada como crematório de vítimas da repressão. A comissão tende a priorizar a retificação dos atestados de óbito dos mortos e desaparecidos e a retomada da análise de ossadas. “Temos uma obrigação legal e ética de, havendo pistas de onde estão enterrados os desaparecidos, fazer todo o esforço necessário para recuperar as ossadas e fazer o cruzamento com o banco de DNA dos familiares das vítimas que já temos”, garante Miranda. •

Publicado na edição n° 1319 de CartaCapital, em 17 de julho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O direito de saber’

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Última Atualização: 11/07/2024