O jardim fresco e sombreado da escritora Åsne Seierstad, a alguns passos do centro de Oslo, capital da Noruega, parece muito distante do Afeganistão e do Talibã. Mas sentada ali, a tomar chá, ela provoca uma sensação vívida daquele outro mundo mais empoeirado e caótico. Essa relação começou para Seierstad duas semanas depois do 11 de Setembro de 2001, quando, como correspondente estrangeira independente, misturou-se às forças da Aliança do Norte, que, com o apoio ocidental, varreriam o regime fundamentalista islâmico do poder. Vinte anos depois, é uma das poucas jornalistas que voltaram, após a desesperada retirada aérea que encerrou o apoio dos Estados Unidos e do Reino Unido ao governo democrático, e passou algum tempo a testemunhar o assustador retorno dos talibãs ao poder.

Sua história é marcada por dois relatos íntimos da vida de famílias que experimentaram aquelas décadas de conflito e medo. O primeiro, O Livreiro de Cabul, tornou-se um best seller em todo o mundo. Ele foi, no entanto, mais que uma mera sensação literária. Tornou-se, depois que o livreiro em quem o livro se baseia processou Seierstad por difamação e invasão de privacidade, um caso de teste para todos os tipos de coisas durante uma década, a começar pelo direito de os escritores usarem a vida de outros como matéria-prima.

Seu segundo livro, Os Afegãos: Três Vidas de Um País Marcado pelo Talibã, lançado neste ano no Brasil, é uma espécie de continuação do primeiro (“Mais como um meio-irmão ou primo”, diz ela). Por meio de três retratos íntimos e separados, oferece uma janela para o momento atual em Cabul, um relato lúcido e, às vezes, comovente de uma cidade que ultimamente sumiu das manchetes, mas que continua a ser uma rachadura definidora no mundo.

Os Afegãos: Três Vidas de Um País Marcado pelo Talibã. Åsne Seierstad. Tradução: Leonardo Pinto Silva. Record (476 págs., 99,90 reais) – Compre na Amazon

O fio condutor entre os dois livros é a determinação de Seierstad de fazer com que o leitor veja essa história recente, particularmente, pelos olhos das mulheres de Cabul. Os problemas jurídicos com o livreiro tiveram origem nessa determinação. O xá Muhammad Rais (chamado de Sultão Khan no livro) acolheu Seierstad em sua família e em sua casa durante vários meses em 2002, depois de concordar com a ideia de um livro. Sem dúvida, ele acreditava que a história contaria ao mundo seu inegável heroísmo ao manter aberta durante quase 30 anos uma livraria eclética no coração de uma das cidades mais devastadas do mundo, apesar da prisão, da censura e das queimas de livros por forças comunistas e talibãs.

O livro de Seierstad contou exatamente essa história corajosa, mas também foi um relato honesto das tiranias patriarcais do mundo de Khan. Na época do livro, Rais estava, “conforme o costume”, e para angústia da primeira esposa e dos filhos, arranjando uma segunda noiva, de 16 anos. O livro não julgou esse comportamento, mas não hesitou em examinar seu impacto emocional, contando-o como realmente foi. Seierstad deixa claro que a luta que ela descrevia não era apenas uma guerra entre o Afeganistão e o Ocidente, ou entre o islamismo estrito e o liberalismo, mas, de maneira mais crítica, no nível cotidiano, entre as tradições draconianas do poder masculino e as esperanças das mulheres afegãs sobre educação e escolha.

Alguns críticos locais acharam que, para uma mulher ocidental, tentar contar essa história, e ganhar dinheiro com um livro, era uma espécie de traição à hospitalidade, uma violação “colonialista” de diversas normas culturais. Seierstad perdeu na primeira instância do processo movido por Rais, que desde 2022 busca asilo no Reino Unido, e sua segunda esposa. Posteriormente, em recurso, os dois tribunais superiores da Noruega a inocentaram.

De volta a Cabul. Na tentativa de demonstrar ao mundo uma feição mais moderada, o regime talibã autorizou a entrada da jornalista no país em 2022 – Imagem: Aamir Qureshi/Getty Images/AFP

Seierstad, de 54 anos, diz que, exceto pelos processos judiciais, não manteve um contato estreito com o Afeganistão nos anos desde então. Seus outros livros incluem The Angel of Grozny, relato local da Chechênia sob ocupação russa, e One of Us: The Story of Anders Breivik and the Massacre in Norway, no qual uma testemunha conta sobre o devastador ataque terrorista de 2011 em seu país, que se tornou a base para o drama da Netflix, 22 de Julho.

O gatilho para o livro foi uma mulher que Seierstad chama de Jamila. Ela ouviu Jamila discursar num debate pela internet na Noruega, onde procurava asilo, sobre o futuro de seu país natal. “A voz dela era muito interessante”, lembra. “Muito ocidental quando se tratava de direitos humanos, mas tão enraizada em sua própria cultura de outras maneiras.” Jamila nasceu em 1976 e viveu histórias suficientes para várias vidas. A sua foi um animado desafio: primeiro em relação à poliomielite, que a debilitou quando criança, depois sobre atitudes que diziam que, ao contrário de seus irmãos, ela devia ficar em casa, não ir à escola e esperar um marido a levar. Jamila não aceitou nada disso. Não apenas estudou, como foi fundamental numa organização que promovia o aprendizado de mulheres e meninas. Esses esforços haviam sido brutalmente cancelados pela mudança de regime.

Seierstad monta a extraordinária história de vida de Jamila no contexto de sua situação atual, incluindo a hostilidade aos refugiados em alguns setores inevitavelmente políticos. As duas se encontraram num centro de asilo a uma hora de Oslo, depois numa aldeia de pescadores na gelada costa norte chamada Alta, para onde Jamila tinha sido absurdamente transferida. “O problema é que, por sua deficiência, Jamila não consegue andar no gelo, por isso ficou presa dentro de casa novamente. A política geral quando as mulheres afegãs chegaram aqui era: ‘Oh, vamos ajudá-las a formar redes e solidariedade’. Mas como podemos fazer isso se todas estão isoladas em diversas aldeias?”

A ambição de Seierstad como escritora é sempre mostrar o indivíduo vividamente, dando uma veracidade humana à guerra, na tradição de Martha Gellhorn ou Svetlana Alexievich. Para que a história de Jamila funcionasse em um livro, ela percebeu que também precisaria dar uma face ao seu adversário. A escritora voou para Cabul em 2022. Teve sorte, diz. “Cheguei ao Ministério das Relações Exteriores ao mesmo tempo que John Simpson, editor da BBC News. Acho que ele foi convidado para se encontrar com o vice-ministro das Relações Exteriores, e eu entrei meio de penetra.” Fluente em cinco línguas, Seierstad havia pensado em ser diplomata, o jornalismo era sua segunda opção. “Eu disse ao ministro”, conta, “que estava procurando um comandante talibã de alto nível para conversar sobre esse livro. Ele riu e disse: ‘Ninguém vai aparecer no seu livro. Não falamos em nosso movimento’.”

Seierstad esforça-se para manter a perspectiva de quem conta a história

Entretanto, o regime ainda tentava passar para o mundo uma aparência mais moderada, e o ministro deu permissão a Seierstad para tentar. O Livreiro de Cabul foi mencionado, pergunto? “Eu sempre o mencionei”, diz. “Mas é claro que os talibãs não leem livros não religiosos e tinham muitas outras coisas com que se preocupar.”

Com o apoio de um intermediário cujo irmão era talibã, Seierstad visitou delegacias de polícia e campos militares em busca de um assunto adequado. Um dia, seu guia encontrou um homem que ela chama de Bashir, que vivia com certo estilo num enorme condomínio fechado, ocupado após a partida das forças norte-americanas. Bashir vivia na intenção de vingar o martírio do pai, um religioso executado pelas forças de segurança quando ele era menino. Posteriormente, sua família teve uma ideia: a felicidade de Bashir. E um objetivo: a jihad. Aos 16 anos, Bashir plantava bombas, aos 20, era um comandante de guerrilha precoce, emboscando comboios de tropas norte-americanas. Com o retorno ao poder, Bashir criou para si um papel de solucionador de problemas e magistrado nos escalões superiores da autoridade talibã, proferindo opiniões específicas por toda a cidade. Por razões próprias – “suponho que seja status” –, Bashir convida Seierstad a observar sua vida e a de suas esposas. A abertura reflete uma mudança de atitude da autoridade talibã. “Se eu tivesse vindo no ano passado, vocês teriam me sequestrado”, diz Seierstad. Bashir ri e concorda.

Mais uma vez, em equilíbrio com seu relato da

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Última Atualização: 11/07/2024