Polarização é uma palavra tão comum que se tornou um tópico amplo. O que é alarmante é o desconhecimento (ou esquecimento) do número de opções entre o A e o Z. Muita gente se sente obrigada a ter uma vida única. Enquanto outra multidão prefere transitar, preservar o direito de escolha.

Orlando, Minha Biografia Política, desde 4 de julho, pode ser confundido com mais um filme de militância. Mas a torrente de diferenças que o longa exibe em pouco mais de 1h40 vale mais do que muita ficção identitária solta por aí.

O primeiro filme do escritor e filósofo Paul B. Preciado começa por desafiar ideias prontas. Trata-se de um documentário em primeira pessoa ou de uma livre adaptação de Orlando: Uma Biografia, clássico modernista de Virginia Woolf?

Toda tentativa de definição será desmentida. Talvez o longa se encaixe na categoria vaga de filme-ensaio. Essa forma de cinema propõe, no lugar da convencional historinha, fluxos de ideias e sensações. Do início ao fim, uma sucessão de indivíduos trans (e não binários) entra em cena declarando seu nome e do personagem que interpreta. Jovens e velhos, femininos e masculinos, crianças e adultos, todos são Orlando. O que nos leva a indagar se, do lado de cá da tela, também não somos um pouco (ou muito) Orlando.

Os breves relatos em primeira pessoa confundem-se com interpretações, ou melhor, performances. Onde terminam os fatos e começam as ficções? Há limites? É preciso haver?

A astúcia de Preciado é se apropriar do cinema para fazer o que os filmes sobre personagens trans não conseguem. Em vez de exibir representantes de identidades excluídas, apagadas, Preciado opta pela implosão da noção de identidade.

O próprio Paul B. é alguém fluido. Nascido na Espanha, nomeado como Beatriz, ele se tornou Paul após a transição. Nem por isso apagou sua vivência de gênero. Ostenta o B. no nome como conquista. Sua batalha de ideias é construída em livros estimulantes, como Um Apartamento em Urano e Manifesto Contrassexual. Seu Orlando é um passo adiante para ocupar o audiovisual, alcançar o público que não lê e sair do nicho.

A estratégia é parecida com a de Guy Debord, que desdobrou seu A Sociedade do Espetáculo em forma de filme em 1974.

Trans, esclarece Preciado ao longo de Orlando, não é apenas categoria sexual ou de gênero. Seu significado maior é político, utópico, pois devolve a possibilidade de transitar, de se transformar, essencial ao viver. E ensina que, se polos são apenas dois, latitudes são muitas.

Publicado na edição n° 1319 de CartaCapital, em 17 de julho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Entre o A e o Z”.

Categorizado em:

Governo Lula,

Última Atualização: 11/07/2024