Com uma escrita vigorosa que performa oralidade, a mexicana Brenda Lozano, de 43 anos, faz de Bruxas um excelente romance que mistura dois Méxicos: o cosmopolita e o dos povos originários.

A Linguagem – assim, em maiúscula – é ela própria uma personagem da obra. O romance explora as diferentes possibilidades da língua como força criadora.

A Linguagem manifesta-se nos dons xamânicos de Feliciana, uma indígena que trabalha nas milpas, terrenos onde não se planta apenas o tradicional milho. Feliciana é a primeira mulher da sua família a herdar o dom que, anteriormente, era exclusivo da linhagem masculina de seus ancestrais. “Em suas cerimônias”, escreve Bruna, “ela se valia das palavras para curar milagrosamente as pessoas.”

O sucesso das sessões da curandeira atraiu a atenção de políticos e artistas. A repórter Zoé, no entanto, vai ao vilarejo do povo nativo não por estar interessada nela, e sim em contar a história de uma morte. Ela, que também tem o poder da Linguagem – por usar a escrita em seu trabalho – se alternará com Feliciana como narradora. A palavra é o fio a unir as duas personagens.

Bruxas. Brenda Lozano. Tradução: Silvia Massimini Felix. Companhia das Letras (224 págs., 79,90 reais)

Analfabeta, a indígena tem acesso espiritual ao chamado Livro, onde há todo o conhecimento disponível. O Livro funciona também como metáfora para os saberes populares. Diferentemente dos homens da família, ela recebeu a permissão divina para acessá-lo.

O idioma espanhol é mostrado em contraponto à língua nativa de Feliciana, revelando uma dinâmica de poder do colonizador sobre os povos originários. A curandeira nega-se a falar espanhol: “Eu só falo minha língua, essa língua que chega a você pelo intérprete, essa língua é a língua dos meus antepassados. (…) Essa língua foi a que me fez, e eu honro quem sou quando falo minha língua”.

A repórter investiga a morte de Paloma, prima de Feliciana e muxe, como os povos de Oaxaca designam um terceiro sexo. Paloma era uma mulher trans que fora curandeira, dom que se manifestou quando ainda era chamado Gaspar. É quase como uma metáfora de um terceiro elemento que surge para equilibrar as forças xamânicas. Antes, só os homens; depois, os muxes; e, finalmente, as mulheres.

Há, ainda, além das duas narradoras, outra grande personagem: Leandra, irmã rebelde de Zoé. É Leandra quem tem maior complexidade literária e enche de vida as páginas de Bruxas. O título, aliás, surge da boca da mãe das ­duas: “Todas nós, mulheres, nascemos com algo de bruxas para nos defendermos”.

Publicado na edição n° 1319 de CartaCapital, em 17 de julho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Pero que las hay, las hay’

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Última Atualização: 11/07/2024