Nota crítica de mulheres acadêmicas sobre a política do cancelamento no ambiente científico e acadêmico.

Assinam:

Adriana Bebiano,  docente e pesquisadora (Universidade de Coimbra – UC)[i]
Allene Carvalho Lage, docente e pesquisadora (UFPB)[ii]
Ana Cristina Joaquim, pós-doutora (UNICAMP) epós-doutoranda (Universidade do Porto)[iii]
Bruna Muriel, docente e pesquisadora (UFABC)[iv]
Cláudia Cristina Ferreira Carvalho, docente e pesquisadora (UFGD)[v]
Cláudia Maisa Antunes Lins, docente e pesquisadora (UNEB)[vi]
Daniele Silva Gonzalez, mestra (UNB) e advogada[vii]
Denilza da Silva Frade, doutoranda (CES- UC)[viii]
Elziane Menezes Flores, doutoranda (Colégio das Artes-UC)[ix]
Fátima Cristina da Silva, doutoranda (CES-UC)[x]
Flora Strozenberg, docente, pesquisadora associada aposentada e consultora jurídica (UNIRIO)[xi]
Inês Barbosa de Oliveira, docente e pesquisadora associada aposentada (UERJ)[xii]
Inesita Soares de Araújo, docente e pesquisadora sênior (FIOCRUZ)[xiii]
Maria Tertuliana Brasil, doutoranda (FPCEUC-UC)[xiv]
Maria do Socorro da Silva Arantes, docente e pesquisadora (UFPI)[xv]
Maria de Lourdes Paz dos Santos Soares, doutoranda (FPCEUC-UC)[xvi]
Marina Andrea von Harbach Ferenczy, doutora (USP e Università di Ferrara)[xvii]
Mary N. Layoun, professora emérita e pesquisadora (University of Wisconsin, Madison)[xviii]
Marina Pereira de Almeida Mello, docente e pesquisadora (UNIFESP)[xix]
Vivian Urquidi, docente e pesquisadora (USP)[xx]
Vania de Vasconcelos Gico, Docente Pesquisadora, docente e pesquisadora (UFRN)[xxi]

  Esta nota crítica surge diante da preocupação coletiva em relação à suspensão do evento ‘O futuro da democracia ou a democracia do futuro’, que teria lugar na Universidade de São Paulo e contaria com a presença do professor Boaventura de Sousa Santos. Embora a justificativa oficial tenha sido a impossibilidade da presença do palestrante por motivos de saúde, fato é que a suspensão do evento coincidiu com mobilizações contrárias à participação do intelectual português.

Ressalte-se que o intelectual português sofreu acusações em 2023, no interior da instituição de pesquisa em que atuava. Elas também se dirigiam à aliada e parceira intelectual de longa data de Boaventura, a moçambicana Maria Paula Meneses,  e ao seu ex-orientando e então colega docente, o cabo-verdiano Bruno Sena Martins. As denúncias, entretanto, não se configuraram como processos legais formais, embora tenham gerado conteúdos midiáticos sensacionalistas e linchamentos simbólicos. Atualmente, o caso segue  nas redes sociais e também no Poder Judiciário Português, onde Boaventura moveu ações por difamação.

Não é de nosso interesse esmiuçar os pormenores do caso e os seus desdobramentos, neste momento. Esta nota, confeccionada coletivamente por acadêmicas e/ou ativistas comprometidas com a justiça social e epistêmica, assim como com a criação de um ambiente acadêmico de diálogo, convida pesquisadores/as, docentes, discentes, departamentos e centros de ensino e pesquisa  a refletir, com serenidade e profundidade, sobre os riscos da consolidação, no ambiente acadêmico brasileiro, do fenômeno social denominado de “cultura” ou “política” do cancelamento.

Cabe destacar que grande parte das autoras estiveram, em algum momento de suas trajetórias acadêmicas, no Centro de Estudos Sociais ou outros departamentos da Universidade de Coimbra ou, a partir de outras partes do mundo, beberam da fonte da proposta intelectual e política das Epistemologias do Sul.

Enfatizamos que não estamos de acordo com práticas de violência de gênero, de qualquer forma de opressão, acosso individual ou institucional nas universidades ou em qualquer outro ambiente doméstico ou de atuação profissional e política. Defendemos que denúncias devem ser consideradas pertinentes e apuradas e, quando comprovadas como procedentes, devem resultar em medidas de justiça e reparação que permitam a superação da violência, em particular da exercida por homens contra as mulheres, fruto de um projeto civilizatório secular, hierárquico e patriarcal.

Reconhecer esse enraizamento estrutural é um passo indispensável, mas insuficiente, se não vier acompanhado da construção coletiva de mecanismos de escuta, acolhimento e responsabilização que não repliquem a violência que pretende-se combater.

A cultura do cancelamento, ainda em fase de definição conceitual,  envolve a crítica (sistemática e massiva) e a censura (arbitrária) de pessoas cujos discursos ou condutas denunciados são considerados execráveis por determinado grupo. Levadas ao limite, as ações de interdição compulsória, inicialmente propagadas pelas redes sociais, impactam diretamente a vida real dos alvos, inviabilizando outras dimensões da existência como trabalho, fontes de renda, relação conjugal e familiar e liberdade de ir e vir, além de abalarem ou destruírem a saúde psíquica e física dos alvos.

Trazidas para o ambiente acadêmico e tendo em vista o extermínio intelectual e profissional de um pensador ou pensadora, as práticas canceladoras envolvem:

a) a retirada de nomes de autores/as cancelados das referências bibliográficas de dissertações e teses, por mais basilares que suas obras tenham sido para as pesquisas ali apresentadas;

b) a revogação dos convites (para participação em bancas, palestras e seminários) feitos aos intelectuais cancelados e, também, àquelas pessoas que, discordando deste apagamento epistêmico, insistem na manutenção de tais nomes em seus variados projetos acadêmicos e intelectuais, em  suas arguições, pareceres e publicações;

c) a recusa de artigos que trazem ideias e argumentos fundamentados nas propostas teóricas e conceituais das fontes “proibidas”, por parte de editores e pareceristas de revistas acadêmicas;

d) a exigência, por parte do alunado, bem como de algumas instâncias de poder nas lides acadêmicas, de que docentes retirem determinadas obras dos planos de ensino das disciplinas;

e) a impossibilidade de “confessar” haver vivido experiências  exitosas e desprovidas de abuso, nas relações (pessoais, acadêmicas e profissionais) estabelecidas com as pessoas canceladas, assim como nos espaços considerados tóxicos;

f) e por fim, o impacto institucional, — como evidenciado recentemente na USP —, em que grupos organizados dentro da universidade podem impedir que colegas realizem eventos, motivados pela discordância quanto à presença de determinado convidado.

Estas e outras ações de cancelamento têm consequências – jurídicas, éticas e metodológicas – interconectadas entre si, a saber:

  • O risco de violação do direito autoral, previsto no artigo 184 do Código Penal brasileiro;
  • A tolerância crescente às formas dissimuladas de plágio ou falso ineditismo de ideias, anteriormente considerados inadmissíveis, através da apropriação de conceitos, reflexões e propostas teóricas e metodológicas sem que o autor receba os devidos créditos;
  • A confiabilidade e a validade das pesquisas científicas e dos resultados que estas apresentam. Isto porque um dos princípios fundamentais do método científico é aquele da replicabilidade, que depende, por sua vez, da transparência e da veracidade das fontes citadas.

Outro imbróglio, de caráter político – e também psicanalítico -,  diz respeito ao silenciamento ou autocensura, que provoca um cenário coletivo de cancelamento pelo receio de represálias a acadêmicos e acadêmicas que interpretam os fenômenos de maneiras dissonantes.

Tomando emprestado um conceito de Michel Foucault, tudo indica que esse ambiente de silenciamento resulta da expansão – dentro e fora das redes – do dispositivo biopolítico domedo, diante da alta probabilidade de a voz discordante tornar-se o novo alvo das práticas. Nesse contexto, as redes sociais funcionam como arenas de julgamento sumário, onde a lógica da polarização amplifica o medo do ostracismo e reduz a possibilidade de debates mais complexos e matizados.

Observamos, com assombro crescente, como a cultura do cancelamento vêm sendo legitimada inclusive entre intelectuais e ativistas comprometidos/as com as lutas sociais e a construção de uma sociedade mais igualitária. Essa contradição revela como, inclusive em espaços críticos, podem-se reproduzir lógicas opressivas, o que exige de nós vigilância constante e disposição para tensionar práticas cristalizadas.

Importante destacar que, nesta carta, distinguimos a diferença fundamental entre cancelar e criticar publicamente —  ainda que, na prática, as fronteiras entre ambas as ações possam se embaralhar. A crítica pública é parte essencial do debate democrático e da vida intelectual da academia: ela visa a contestar ideias, posicionamentos ou comportamentos com base em argumentos, permitindo o contraditório e o esclarecimento.

Diferentemente, a política de cancelamento tende a operar como uma forma de deslegitimação sumária, em que o foco deixa de ser o conteúdo do que está em debate, e passa a ser a invalidação da própria pessoa enquanto sujeito legítimo no espaço público ou acadêmico. A crítica estimula o debate, enquanto o cancelamento o encerra; a crítica busca transformar, enquanto o cancelamento visa punir. Distinguir esses dois gestos é crucial para preservar a responsabilidade ética nas disputas contemporâneas de sentido.

É nesse ponto que cabe afirmar: autores e obras não podem ser apagados, ainda que devam ser atravessados pela crítica legítima, que reconhece a densidade histórica e política de uma referência, situando-a em seus limites e contradições. Questionar uma referência é parte do movimento de construção do pensamento; eliminá-la é recusar o próprio solo sobre o qual se ergue o debate. O gesto crítico, quando autêntico, não fecha caminhos, mas os multiplica — não elimina vozes, mas tensiona seus sentidos, abrindo horizontes mais amplos de compreensão e disputa.

Defendemos a urgência de construir mecanismos que enfrentem as múltiplas violências engendradas pelas articulações de classe, gênero e raça que, no espaço acadêmico, não aparecem como fatos isolados, mas como expressões articuladas de uma estrutura que, há séculos, nega legitimidade a determinados corpos, saberes e territórios. Compreendemos, neste sentido, os limites do direito moderno que, criado sob uma lógica ocidental, capitalista, patriarcal e colonial, muitas vezes segue reproduzindo privilégios.

Apesar disso, não podemos prescindir do uso contra-hegemônico dos meios legais disponíveis. Uso este que, ao longo das últimas décadas, resultou em inúmeras conquistas coletivas.

As mídias, as plataformas digitais e as redes sociais não podem servir como alternativa ao aparato jurídico existente.  Superar os seus limites exige ações institucionais, pedagógicas e coletivas que reconheçam a pluralidade de vozes, experiências e existências. Assim, podemos seguir caminhando em direção a uma justiça verdadeiramente emancipatória, que enfrente as raízes das violências e promova mudanças duradouras.

É, portanto, urgente impor limites ao avanço das práticas canceladoras – contrárias à legislação, antiéticas e anti metodológicas – no ambiente acadêmico (e fora dele). A cultura do cancelamento atropela os direitos humanos, além de corroer a metodologia científica e a liberdade de cátedra. Além disso, ela fragiliza a produção de conhecimento e os afetos, e afasta a academia de ser um espaço de diálogo, debate e formação crítica e sensível, comprometido com a transformação social. Seguimos firmes na luta por igualdade e justiça para todas as pessoas, em particular para as mulheres, e também na defesa dos espaços que respeitem a pluralidade, a presunção de inocência e a complexidade dos vínculos humanos.


[i] Doutora em literatura inglesa e professora associada com agregação da Universidade de Coimbra (UC). Pesquisadora em Estudos Feministas e presidente do conselho científico do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra (UC) (entre 2019 e 2022).

[ii] Doutora em Sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC), Portugal. Professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPB).

[iii] Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), pós doutora pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e pela USP, doutoranda da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. 

[iv] Doutora pelo Programa em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (Prolam-USP). Realizou o doutorado-sanduíche no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra. Professora da Universidade Federal do ABC (UFABC).

[v] Doutora em Educação pela UFMT, com estágio Doutoral no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra. Professora da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).

[vi] Doutora em Pós-Colonialismos e Cidadania Global pelo Centro de Estudos Sociais (CES), da Universidade de Coimbra. Professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB).

[vii] Mestra em Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade de Brasília (PPGDH/UnB), especialista em mediação, gestão e resolução de conflitos pela Escola Superior da Advocacia – ESA/OAB.

[viii] Mestra em Gestão e Políticas Públicas pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) e doutoranda de Sociologia (CES) pela Universidade de Coimbra.

[ix] Mestra em Estudos Feministas e Doutoranda em Arte Contemporânea pelo Colégio das Artes  pela Universidade de Coimbra.

[x] Doutoranda pelo Programa de Território, Risco e Políticas Públicas pelo Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.

[xi] Doutora em Direito Constitucional e Políticas Públicas, com pós-doutorado pela UNESA. Professora Pesquisadora associada aposentada da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e consultora jurídica.

[xii] Doutora em Educação, pós-doutora pelo Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra (2002) e Professora aposentada da UERJ, da UERJ.  Presidenta da Associação Brasileira de Currículos (ABdC).

[xiii] Doutora em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com pós-doutorado pelo Centro de Estudos Sociais  (CES) da Universidade de Coimbra. Professora e pesquisadora sênior da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ).

[xiv] Mestra em Ciências da Educação pela Universidade Lusófona de Ciências da Educação e Tecnologias, Lisboa. Doutoranda pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação (FPCEUC) da Universidade de Coimbra.

[xv] Professora e pesquisadora da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e coordenadora do Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Educação e Ciência Descolonial (NEPEECDES).

[xvi] Mestra em Sociologia pela Fundação Joaquim Nabuco (UFPE).   Doutoranda pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação (FPCEUC) da Universidade de Coimbra.

[xvii] Doutora em ciências pela USP e PhD pela Università Degli Studi di Ferrara, Itália. Realizou o doutorado-sanduíche no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.

[xviii] Ph.D. em Literatura Comparada, Universidade da Califórnia, Berkeley. Professora emérita da Universidade de Wisconsin, Madison. Membro do Conselho Consultivo Externo do CES até janeiro de 2025.

[xix] Doutora em antropologia pela USP, com pós-doutorado em Pós-colonialismos e cidadania global pelo Centro de Estudos Sociais (CES)  da Universidade de Coimbra. Professora da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).

[xx] Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo, com pós-doutorado pelo Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra. Professora e pesquisadora na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo.

[xxi] Doutora em Antropologia pela PUC/SP, com pós-Doutorado pela Universidade Nova de Lisboa. Assessora de Relações Internacionais do PPGCS-UFRN / UNI-RN no período de 2015 a 2023 mantendo forte intercâmbio e convênios entre o CES e as Universidades.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: https://www.catarse.me/JORNALGGN

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 29/08/2025