
Democracia de voto comprado e o poder dos sem voto
por Armando Coelho Neto
O nome dele é Hugo Motta. A bocas miúdas, porém, o sobrenome vira Moita, Morta ou Marmota. Sabe-se lá como, obteve votos e é presidente da Câmara dos Deputados. Para ele, não existiu tentativa de golpe, houve gravidade da depredação das sedes dos Três Poderes, mas “Teria que ter líder”. Por pouco não repete a cantilena de certos juristas, golpistas, malabaristas e vigaristas.
Por erro de análise, má fé, ensaio de conciliação, talvez até desconhecimento dos fatos, Motta alimenta o discurso golpista. Há quem diga que tenta fazer média, mas há quem fale de simples covardia. Há poucos dias, entre pisões, safanões, pressões de ladrões (haja ões!), ele foi impedido de exercer um dos poderes da República. Ao permanecer praticamente inerte, contribui para banalizar o vandalismo.
A tentativa de golpe, hoje em julgamento, incluiu ataques à torres de transmissão elétrica. Sim, o Brasil não ficou às escuras, mas o apagão moral da Câmara Federal sobrevive até hoje. A emblemática frase pichada no vidro quebrado do Salão Negro: “Destituição dos três Poderes” poderia revelar o significado do 8 de janeiro. Poderia ser contextualizada e interpretada no contexto das demais provas produzidas. Mas…
Motta prefere o reduzir a tentativa de golpe ao 8 de Janeiro. Desse modo, pode garantir o direito de negar o óbvio, de não pensar ou se posicionar. Mais que isso, o liberta do dever de agir conforme a gravidade do caso. Uma escolha com a qual pode minimizar até os ataques à soberania nacional. Paga, porém, o preço de municiar quem o chama de golpista, covarde e traidor. Melhor pensar que não.
Esse é o pior Congresso da história. A frase teria sido proferida nos anos 80 por um jornalista, se dirigindo ao deputado Ulisses Guimarães. “Isso é por que você ainda não viu o próximo”, teria sido a resposta do Senhor Constituinte. Não era profecia, mas sim reflexão sobre o processo de conquista de votos. É como se no fundo algo o lembrasse “A cadela do fascismo está sempre no cio”, como dizia Bertoldt Brecht.
É que a cadela do fascismo não tem escrúpulos para garantir votos, e dá ele, quando conveniente, o sentido absoluto de soberania, democracia. Não importa que seja comprado, fruto de medos, táticas terroristas, profecias de catástrofes econômicas iminentes, apropriação de ressentimentos, insucessos e desilusões de incautos. E assim, se apresentam como soluções para problemas que eles próprios criam.
Mas, é mais fácil culpar o Lula do que vê a corrupção do Congresso. Com ares de máfia ou covil (exceções à parte) fazem descaso da má impressão que passam. É como se o “código de honra e os tribunais de ética” dos PCC e outras organizações criminosas inspirasse mais respeito aos seus subvertidos valores, do que os consagrados pela Câmara Federal. É isso? Perguntar não ofende.
Cadê o decoro? O que dizer dos ataques físicos, pessoais entre pares. Mulheres agredidas pelo simples fato de serem mulheres. Pode ficar impune um deputado que diz: “Eu respeito como parlamentar, não como mulher”, dirigida à multiagredida ministra Marina Silva? Pago com dinheiro público, um deputado corrupto homiziado nos EUA afronta autoridades, insufla ataques à soberania. Cadê o nacionalismo?
Com selo do voto, muitos praticam roubos, fraudes, desviam verbas de emendas, promovem escândalos de todos os gêneros, buscam aprovar leis que lhes garantam impunidade e assegurar o produto do roubo. Tentam e muitas vezes conseguem proteger seus pares envolvidos em crimes. Sem contar que fazem leituras de conveniência da imunidade parlamentar por autoproteção ou atacar adversários.
Hoje, a Casa que representaria o povo está distante desse papel. Embora em nome do povo, muitos não dão sinais de atuação em favor sociedade. A maioria sequer disfarça que lá está para defender seus patrocinadores – sejam banqueiros, empreiteiros, agro-picaretas, traficantes, estelionatários da fé e do jogo, detratores do meio ambiente. A Casa do Povo virou covil de ladrões do dinheiro público?
Em nome da soberania do voto popular, criticam os poderes “sem voto” de olho no STF, mas flertam com o Banco Central, presidência da Câmara, Senado. Com sentido de conveniência, democracia é convencer o incauto de que oposto é o comunismo. E, aí, parafraseando o jornalista mineiro Mouzar Benedito, dá até saudade do tempo em que só militares viam comunistas embaixo da cama.
Hoje, civis descerebrados veem comunismo no banheiro, na vacina, na defesa de índios, cultura, combate ao garimpo ilegal, desmatamento, queima de florestas…
Armando Rodrigues Coelho Neto é jornalista, delegado aposentado da Polícia Federal e ex-representante da Interpol em São Paulo
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