
Gourmetização: reação da classe média à ascensão social dos pobres
por Francisco Fernandes Ladeira
Minha experiência no antigo primeiro grau – atual ensino fundamental – foi emblemática para compreender a dinâmica social brasileira. Na época, percebi que as turmas não eram divididas por rendimento intelectual, como alegava a direção da escola, mas por classe social. A turma “A”, supostamente a mais adiantada, era composta por filhos da classe média. À medida que se descendia no alfabeto, da “B” em diante, decrescia também a origem socioeconômica dos alunos. Embora, na infância, me faltasse o vocabulário sociológico para elaborar aquele fenômeno, a percepção da divisão era clara. Não por acaso, a imensa maioria daqueles colegas da turma “A” encontra-se hoje à direita no espectro político, não raro compartilhando fake news contra o PT.
Esse padrão segregacionista era comum nas décadas de 1980 e 1990, pelo menos em minha cidade natal. Os filhos da classe média frequentavam as “melhores” escolas públicas, aquelas com melhor infraestrutura. No segundo grau (atual ensino médio), testemunhei um movimento revelador: à medida que alunos da classe trabalhadora conquistavam vagas nas então “escolas públicas de referência”, os filhos das famílias mais abastadas migravam massivamente para o ensino privado. Era a materialização do preconceito de Dona Florinda: a recusa em “se misturar com aquela gentalha”. Paralelamente, o governo do estado, do finado PSDB, já iniciava o processo deliberado de sucateamento da rede pública.
Esses dois exemplos ilustram mecanismos históricos de segregação no Brasil, nos quais a classe média demonstra aversão a dividir espaços com os pobres – a não ser que estes estejam ali para servir. Nesse sentido, a ascensão social da erroneamente denominada “classe C” – o ingresso massivo desses indivíduos em espaços antes monopolizados pelas elites, como shoppings, universidades e aeroportos – constitui o principal motivo que levou parcela significativa da classe média a vestir verde e amarelo, dançar em torno do Pato da FIESP e pedir golpe contra Dilma Rousseff. O resultado desse processo foi o fortalecimento do bolsonarismo. O resto, como se diz, é história.
Imagine o pensamento do indivíduo típico de classe média: Pobres em aeroportos? Jovens periféricos dando rolezinhos no shopping? Pretos na universidade, querendo ser “doutores”? Isso é inadmissível. Onde já se viu? E os meus privilégios?”.
Como tais espaços – ao contrário das escolas públicas – não podem ser facilmente sucateados, a estratégia de exclusão precisou se sofisticar. A solução encontrada foi a gourmetização. Se, no exemplo anteriormente, a classe média fugiu das escolas públicas, agora é o pobre quem deve ser expulso. E a violência policial direta, embora presente, é reservada para casos pontuais. A estratégia predominante é outra.
Na lógica perversa da gourmetização, todo lugar ou serviço que corra o risco de ser usufruído pelos pobres passa por um processo de “valorização”. Longe de significar apenas “melhorar um produto”, trata-se de uma transformação radical na economia e na cultura de um lugar, tornando-o inacessível por outras vias.
A barreira mais imediata é o preço. Um hambúrguer que custava R$ 15,00 transforma-se em um “blend de angus com geleia de bacon e cheddar artesanal” por R$ 65,00. O simples inflacionamento do valor exclui automaticamente quem não pode pagar.
Contudo, a exclusão não é meramente financeira. Mesmo que um indivíduo ascendente economicamente consiga pagar esporadicamente por algo “gourmet”, ele pode ser barrado por códigos sociais invisíveis. O cardápio repleto de termos em inglês ou francês (confit, reduction, aioli), a atmosfera deliberately sisuda, o tipo de conversa – tudo é meticulosamente planejado para sinalizar, de forma sutil e eficaz: “este espaço não é para você”.
Por fim, a gourmetização opera por meio da apropriação e do esvaziamento da cultura popular. Elementos genuínos – como o cachorro-quente de rua, o boteco, o pastel – são “refinados”, perdendo justamente a característica que os tornava acessíveis e autênticos. O boteco vira “gastrobar”, o pastel vira “pastel assado de forno com recheio de queijos especiais”. Desse modo, espaços outrora democráticos tornam-se territórios seletivos.
Em resumo, a gourmetização pode ser perfeitamente interpretada como uma reação da classe média à ascensão social das classes populares. Ela funciona como um mecanismo duplo: inflaciona preços e erige novas barreiras simbólicas para preservar a distinção e a exclusividade de certos espaços.
Trata-se do capítulo moderno de uma antiga história social. Como explicou Bourdieu, é a contínua busca por distinção, na qual o acesso econômico e cultural a bens e espaços é a moeda que define pertencimento. Ou, lembrando o velho Marx, é a própria luta de classes se atualizando.
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Francisco Fernandes Ladeira é professor da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Autor do livro “A ideologia dos noticiários internacionais – volume 2” (Emó Editora)
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