O MAIOR DESENHISTA QUE NÃO SABIA DESENHAR DO MUNDO

Por Gilberto Maringoni*, em perfil de rede social

Perdemos Jaguar. Perdemos Sérgio Magalhães Gomes Jaguaribe, um daqueles gênios que aparecem muito de vez em quando na vida cultural.

Jaguar foi o cartunista – juntamente com Ziraldo – que mais profundamente captou a alma brasileira nas artes gráficas. Elevou a bobagem à categoria de grande arte, levou ao ridículo generais e altos burgueses no golpe de 1964, destroçou mentiras da grande mídia e retratou os prejudicados pela nossa desigualdade como nenhum outro.

Nada escapava do artista que desenhava certo por linhas para lá de tortas. Um dia alguém escreverá uma tese sobre “o universo jaguariano”, que incluirá o mundo de pobreza e violência dos subúrbios, os comezinhos detalhes do cotidianto, como impagáveis aposentados de chinelos de dedos e meias, peladas com bola de capotão, padres de rala piedade, bobes em profusão nos cabelos de madames e minudências afins. Nada escapava a um traço desconjuntado e detalhista de um artista de olho apuradíssimo que nunca estudou desenho.

Suas ilustrações para todos os livros de Stanislaw Ponte Preta mostraram ao mundo as verdadeiras caras de Rosamundo, Primo Altamirando e Tia Zulmira. Foi tão agudo que cada vez mais acho que Stanislaw só escrevia depois de Jaguar criar graficamente a ambientação de cada crônica. Raras vezes a simbiose entre escrita e traço foi tão sublime.

E havia o Jaguar da porradaria pura. A melhor definição da babação de ovo de Arnaldo Jabor para os poderosos é a jaguariana: “Ele é um rebelde a favor”.

Alugou um fardão da Academia Brasileira de Letras e muniu-se de uma caixa de ovos para recepcionar o entreguista-mor Roberto Campos (Bob Fields) em 1999, em sua posse como imortal. Desencontraram-se para infelicidade de nosso herói.

Jaguar foi, com Tarso de Castro, um dos criadores do Pasquim, com a equipe que incluia gigantes como Ziraldo, Millôr, Claudius, Ivan Lessa e Henfil. Deu à luz a Sig (Sigmund Freud), ratinho verde com patas de elefante, mascote infernal do semanário que capitaneou por 22 anos, até o naufrágio, em 1991.

Realizei uma longa entrevista com Jaguar para a revista Atenção!, em 1997. Na verdade, fui à sua casa, em Copacabana, no meio da manhã e acompanhei (mal) um footing etílico pelo bairro até o cair da noite.

Saí trançando as pernas e com dificuldades para reunir cacos de gravações feitos ao longo do dia. Parei na quinta ou sexta dose de não me lembro mais o quê, enquanto o mais ilustre dos Jaguaribe reinava impávido, com seu motor a álcool.

Jaguar nunca se filiou a partido algum, era um carioca (nascido em Santos) de rara cordialidade, que virava um vulcão diante de bobagens e injustiças.

Seguia a linha de que vida intelectual se funde com inconformismo sempre. Uma vez, Millôr o definiu como uma combinação de “gênio e idiota”. Quase foi para a briga: “Chamar de idiota, tudo bem, mas de gênio, jamais! Detesto ironia”.

Foi-se aos 93. Ou aos 23, como gostava de proclamar. Nascido aos 29 de fevereiro do bissexto anos de 1932, garantia só comemorar aniversário a cada 4 anos. Estava mais do que certo.

Adeus meu camarada. Sua falta abre um déficit incomensurável na vida brasileira.

*Gilberto Maringoni é jornalista, professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC).

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Last Update: 24/08/2025