Contra a calúnia Em defesa de Boaventura de Sousa Santos

Por Marilena Chaui

Preâmbulo

Afinal, que raio de democracia é esta em que vivemos?

Um homem é acusado, os órgãos de comunicação divulgam à exaustão a acusação sem ouvir o acusado, mesmo que, até aí, tenha sido um dos seus colaboradores mais lidos.

O acusado, de repente, vê todos os órgãos de comunicação que desejavam a sua colaboração escrita fecharem-lhe até a hipótese de poder defender-se, não admitindo sequer a presunção de inocência que a chamada democracia em que vivemos, perdão, a chamada democracia liberal em que vivemos defende até para o maior criminoso, quer seja assassino, quer seja um banqueiro considerado dono disto tudo a quem se atribuem agora as maiores tropelias com prejuízo de milhares de pessoas que viram as suas economias desaparecer, atribuindo a esse banqueiro o desvio de muitos milhões. Estes têm defesa e a presunção de inocência, como referi, mas aquele acusado deixa de ter direitos.

A agravar a situação, o acusado pede ao Ministério Público que lhe abra um processo, uma forma que ele pensou poder abrir-lhe as portas à defesa da sua honra. Mas o Ministério Público diz-lhe que não há matéria para poder abrir-lhe esse processo. Ao ler essas acusações, interroguei-me: o Boaventura? Sim, é ao acusado Boaventura de Sousa Santos que estou a referir-me.

Evidentemente, fiquei atento. Para além de lhe ficar vedado o acesso aos órgãos de comunicação, comecei a ter mais notícias. Um dos sociólogos mais prestigiados do Mundo, que orientava cursos em algumas das universidades mais procuradas por estudantes de vários países, incluindo universidades norte-americanas — Boaventura de Sousa Santos passava metade do ano fora de Portugal por esse tipo de compromissos — estava agora a ser remetido ao silêncio, tudo praticamente numa acção simultânea que me causou grande estranheza, foi como se houvesse uma ordem de alguém poderoso, que tudo domina neste nosso Mundo Ocidental e que não pode deixar de ser obedecida.

A reflexão teve continuidade, como não poderia deixar de ser. Dentro de mim começou a ganhar força uma conclusão: querem matar uma voz que é ouvida em vários continentes, uma voz incómoda, criativa, uma voz que se faz ouvir através da escrita, mas também pela acção, em particular na América Latina, num continente que os EUA querem como seu quintal e não mais do que isso, ousando mesmo ser um dos mais importantes participantes no Fórum Social Mundial, defendendo teses profundamente incomodativas para os que se julgam os senhores do mundo e senhores do capital financeiro. É uma verdadeira acção de cancelamento, como outras já aconteceram a personagens que muito incomodaram os que se querem mandões do Mundo, cada vez mais ferozes ao verem que esse Mundo de que querem ser únicos patrões se vai encurtando, a que o Júlio Marques Mota já aludiu num texto publicado recentemente neste blogue.

Como me soube interessado, Boaventura de Sousa Santos enviou-me alguns documentos que li de imediato e o interesse para publicação dos mesmos no blogue logo por mim foi manifestado, juntando-se-me o Júlio Marques Mota, também pelo blogue responsável, a reforçar junto de Boaventura a nossa disponibilidade, a que este acedeu.

Vários textos de Boaventura de Sousa Santos têm vindo a ser publicados desde então, sobre a área da especialidade do eminente sociólogo, mas também sobre a difamação “que caluniadoras, com fraude, malícia e inveja, perpetraram contra Boaventura de Sousa Santos”, como afirma, na carta que a seguir se publica, a não menos eminente Professora e Filósofa Marilena Chaui, Professora Catedrática da Universidade de São Paulo, uma das grandes especialistas mundiais de Espinosa.

Resolvi voltar aos vários livros de Boaventura de Sousa Santos que tenho na minha biblioteca. Reli de imediato “Esquerdas do mundo, uni-vos!”, um tema que me tem ocupado há muito, e, surpresa, deparo com “PNEUMATÓFORO – Escritos Políticos 1981-2018”, que tinha adquirido logo após a sua publicação e que ainda não havia lido.

Dediquei-me à leitura desta sua obra, começando por o capítulo 13 – “Catorze Cartas às Esquerdas”, por o próprio título deste capítulo me ter chamado a atenção. O autor escreve «às Esquerdas», não «à Esquerda» e logo pensei: «Mas isto é um dos tormentos da minha vida!».

Prosseguida a leitura, agora desde o início, em mim se ia formando a verdadeira razão por que querem calar Boaventura de Sousa Santos, ideia que se consolidou lembrando algumas das outras obras que conheço do Boaventura, o que me leva a alertar o leitor para o que escreve a Professora Filósofa Marilena Chaui na já citada carta, a seguir reproduzida: “Boaventura propõe algo inédito: um novo paradigma como processo de enfrentamento e superação da crise da modernidade, a ecologia dos saberes, capaz de destruir os pressupostos com que a modernidade opôs ignorância e saber como paradigma legitimador de exclusões culturais sobrepostas a formas de exploração econômica, dominação ideológica e exclusão social e política. Os conceitos de conhecimento-emancipação e de ecologia dos saberes estão intrinsecamente articulados, na medida em que exprimem o núcleo epistemológico das ciências e da filosofia como trabalho que interroga a experiência para torná-la experiência compreendida, passando do fato ao conceito, do dado ao sentido.”

Boaventura de Sousa Santos ousa tudo questionar para encontrar um caminho que leve à construção de uma sociedade justa, para o que temos de ter consciência de que a verdade é uma busca constante, de verdade em verdade, sem impor uma, que a vida se constrói no respeito por valores e pela diferença. Há que reinventar tudo, onde a própria política e, logicamente, a própria democracia, não estão ausentes nessa necessidade de tudo reinventar.

Boaventura mostra também que a actividade humana tem de ser tomada como actividade objectiva, no sentido em que não é apenas capaz de intervir no real, como também de transformá-lo, utilizando palavras que utilizei num outro texto que escrevi. Se Boaventura se limitasse a escrever, o mundo ocidental até era capaz de apenas se limitar a dificultar a sua divulgação, mas Boaventura ousou muito mais, actuou e, nessa actuação, para além da criação do CES- Centro de Estudos Sociais, formando ali investigadores oriundos de vários países e continentes — «cuidado, isto é muito perigoso!», terão pensado os que se julgam senhores do Mundo —, como também agindo em outros fóruns, nomeadamente no Fórum Social Mundial. Que atrevimento, Boaventura não se limitou a agir no seu país, mas levou a subversão a vários continentes. Que atrevimento, que ousadia!

Voltando à difamação, que está na origem da carta da Professora Filósofa Marilena Chaui e deste meu preâmbulo, a publicação neste blogue de “Difamação: toda a verdade documentada”, de que fui o editor, esclareceu-me definitivamente, para o que convido o leitor a debruçar-se sobre o seu conteúdo, pois a busca da verdade deve ser uma preocupação de todos nós, baseando-nos em factos, e com a consciência de que, sem contraditório, a verdade nunca sairá à luz do dia.
Espero que o leitor perceba o que está, realmente, em jogo nesta tentativa de silenciamento de Boaventura de Sousa Santos.

Portela (de Sacavém), 2025-08-22

António Gomes Marques
— X —

Contra a calúnia

Em defesa de Boaventura de Sousa Santos

Alguém que visite os Uffizzi, certamente há de maravilhar-se com a diferença entre duas pinturas de Botticelli: Primavera e A calúnia de Apele.

A primeira é radiosa. De uma beleza celestial, Primavera quase paira no ar, seus pés mal roçando o gramado de um verdejante bosque florido, em que dançam as Três Graças. Em contrapartida, a segunda é terrível: Inveja, acompanhada por Fraude e Malícia, enrodilhadas em vestes sombrias, aprovam Calúnia, que, agarrando os cabelos da vítima, arrasta pelo chão Apele semi-nu, enquanto Ignorância e Suspeita murmuram palavras venenosas no ouvido do rei. À distância desse conjunto maléfico, solitária, apontando para a justiça celeste, encontra-se Verdade, nua, pois nada tem a esconder.

A nós, brasileiras e brasileiros, portuguesas e portugueses, que, durante anos, vivemos sob ditaduras em que o pensamento era crime, em que amigos e amigas, companheiros e companheiras, na luta por liberdade, justiça e felicidade de nossos povos, foram arrastados secretamente para prisões e calabouços, sofrendo tortura física e psíquica e assassinato, deixando dores e marcas indeléveis nos sobreviventes, o quadro de Botticelli expõe o inaceitável e o inominável.

No entanto, penso não haver imagem mais pertinente e adequada para descrever o que caluniadoras, com fraude, malícia e inveja, perpetraram contra Boaventura de Sousa Santos, cuja biografia política revela sua atuação nas lutas democráticas de Portugal, da África, do Brasil e de outros países da América Latina, assim como sua presença decidida no Fórum Social Mundial, e cuja biografia acadêmica é tecida com os fios de seu pensamento inovador e de seu trabalho formador de novas gerações de professores e pesquisadores em Portugal, no Brasil, na África e noutras partes do mundo. Disso dão provas a criação, na Universidade de Coimbra, do Centro de Estudos Sociais e da revista Crítica de Ciências Sociais.

Um dos traços mais marcantes que definem a obra e a pessoa de Boaventura de Sousa Santos é a articulação entre reflexão teórica e intervenção prática, introduzindo conceitos inovadores e instigantes, nos quais o trabalho do pensamento é o primeiro momento de uma ação cujos efeitos se desdobram na invenção de novas práticas sociais, políticas, jurídicas, científicas, universitárias. Numa palavra, em Boaventura o trabalho do pensamento é o primeiro momento de uma ação cujos efeitos se desdobram na invenção de novas práticas sociais, políticas, jurídicas, científicas, universitárias.

Para que as calúnias sejam vistas tais como são – isto é, como calúnias – é preciso salientar e dar a ver a força teórica do trabalho de Boaventura, que não poderia ter outra fonte senão a agudeza de suas reflexões, levando-o a formular um conceito inédito nas ciências sociais e na filosofia, o de conhecimento-emancipação, voltado para a crítica do que ele nomeou como razão indolente, a partir da análise da crise da modernidade com o fracasso teórico e prático para harmonizar a oposição entre regulação e emancipação, constitutivas do projeto moderno. Para tanto, Boaventura propõe algo inédito: um novo paradigma como processo de enfrentamento e superação da crise da modernidade, a ecologia dos saberes, capaz de destruir os pressupostos com que a modernidade opôs ignorância e saber como paradigma legitimador de exclusões culturais sobrepostas a formas de exploração econômica, dominação ideológica e exclusão social e política. Os conceitos de conhecimento-emancipação e de ecologia dos saberes estão intrinsecamente articulados, na medida em que exprimem o núcleo epistemológico das ciências e da filosofia como trabalho que interroga a experiência para torná-la experiência compreendida, passando do fato ao conceito, do dado ao sentido.

Justamente porque visa o saber sob a perspectiva do conhecimento emancipatório e de uma epistemologia da emancipação, tomando como determinação decisiva do saber sua dimensão ético-política, a ecologia dos saberes leva Boaventura de Sousa Santos à recusa da ideologia do multiculturalismo. Este pressupõe a existência de uma cultura dominante que aceita, tolera ou reconhece a existência de outras culturas no espaço cultural onde se impõe. Contra o multiculturalismo, Boaventura de Sousa Santos propõe a inter-culturalidade, que pressupõe a pluralidade cultural equitativa, o reconhecimento recíproco e o enriquecimento mútuo entre as várias culturas que partilham um campo determinado de interação.

Num mundo atualmente pobre em pensamento, acomodado à razão indolente, é preciso fazer valer o trabalho criador do pensamento. Todavia, um segundo motivo está presente na escolha do caminho assim traçado. Com efeito, o trabalho crítico de Boaventura de Sousa Santos jamais se realiza sem a elaboração de contrapropostas teóricas e práticas, pois, para ele, é preciosa reinventar a racionalidade, reinventar a sociedade, reinventar a política, reinventar a democracia, reinventar a cultura, reinventar a universidade. Por isso sua obra busca recriar uma teoria crítica cujo sentido se encontra na prática da emancipação, ou seja, sua obra se deixa ler na expressão cunhada por ele: “conhecimento prudente para uma vida decente”. Eis porque em sua obra não é possível separar teoria e prática. Seu pensamento é uma ação e suas ações são pensamentos concretizados nas práticas dos sujeitos sociais, políticos e históricos.

Torna-se irrisória a suposição de que um pensador dessa envergadura precise plagiar alunas. Por outro lado, é igualmente malévolo imaginar que o defensor de uma vida decente pretendesse aproveitar-se de uma suposta ingenuidade delas para assediá-las sexualmente, pois convém não esquecermos de que, como bolsistas do Centro de Estudos Sociais, as caluniadoras usufruíram de uma tradição acadêmica de boas condições de vida e de trabalho mediante procedimentos acadêmicos de remuneração de bolsas de pesquisa, e não por meio de favores sexuais. Não só isso. Ao atribuir-lhe falsamente uma vida indecente, as caluniadoras ferem os ideais dos movimentos feministas, pois não há de ser libertário valer-se da mentira como arma de libertação.

A calúnia pretende não só desacreditar a pessoa de Boaventura de Sousa Santos, mas também sua contribuição intelectual decisiva de pensador capaz de elaborar conceitos inovadores, que conferem sentido ao nosso presente e aos rumos de nosso provir. Não a deixaremos vencer.

Como colega de Boaventura, exprimo não apenas minha indignação pela malevolência perpetrada contra ele e contra o Centro de Estudos Sociais, mas também minha admiração e meu respeito por seu trabalho como pensador. Como mulher, sempre reconheci sua atitude generosa, elegante, gentil e cortês nos gestos e nas palavras. Como amiga, o bem-querer tem sido a marca de nossa longa e feliz amizade.
Numa das mais belas passagens da Ética a Nicômaco, Aristóteles escreve que a amizade é a maneira humana de imitar o divino. Finitos e carentes, somos habitados pela falta, pela dependência e pela presença da morte, mas também, e por isso mesmo, somos movidos pelo desejo de plenitude e de autarcia, próprios do deus. É a amizade que nos aproxima do divino: o bem-querer entre os amigos, o partilhar e compartilhar com eles nossa vida, a ajuda recíproca e desinteressada em que cada um completa o outro, confere a cada um e à unidade por eles formada a mais perfeita figura humana da autarcia, da liberdade e da felicidade, que pareceriam reservadas apenas ao divino.

Por isso, ecoando Aristóteles, La Boétie escreveu que “a amizade é nome sagrado, coisa santa; ela nunca se entrega senão entre pessoas de bem e só se deixa apanhar por mútua estima; ela se mantém menos por benefícios e mais por uma vida boa. O que torna um amigo seguro do outro é o conhecimento de sua integridade, bondade natural, fidelidade e constância”.

Marilena Chaui é professora de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP).

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Last Update: 24/08/2025