“Mão no celular e pé no barro”. É assim que Guilherme Boulos resume o que a esquerda precisa fazer para sair da “apatia impotente” e construir uma reação eficaz na guerra contra a extrema-direita no mundo real e virtual. É no quarto capítulo do livro “Pra onde vai a esquerda?” que Boulos faz um raio-x da “crise de rumo” do campo progressista e aponta, sem rodeios, ações práticas para mobilizar a militância, que encontra-se fragmentada e, consequentemente, sem fôlego para enfrentar o bolsonarismo.

Por dialogar com questões urgentes para a defesa da democracia brasileira, o livro de Boulos foi escolhido para inaugurar o Clube do Livro GGN em agosto de 2025. Na próxima segunda-feira (25), Boulos será entrevistado pelo jornalista Ícaro Brum para o canal TVGGN, no Youtube, a partir das 18 horas. Nesta sexta-feira (22), às 21 horas, os leitores do Clube do Livro se reúnem com a redação GGN em um encontro virtual interativo, pelo Zoom, para debater as ideias contidas no livro.

O GGN já publicou um resumo dos três primeiros capítulos:

Capítulo 1: Cinco fatores históricos que deram origem à extrema-direita
Capítulos 2 e 3: Estamos diante do risco distópico de um longo ciclo da extrema-direita no poder?

Confira, abaixo, uma síntese do quarto e último capítulo, que leva o mesmo nome do livro: “Pra onde vai a esquerda?”

A distopia bate à porta

A humanidade enfrenta atualmente uma crise que não é apenas econômica ou política, mas uma “crise de destino”. Atravessamos desafios sem paralelos na história: o negacionismo às mudanças climáticas; a desigualdade social (ou a repulsa das elites às políticas de combate a essas desigualdades) e a concentração de renda nas mãos dos bilionários; e a destruição do senso de coletividade, que foi substituído pelo individualismo.

Recém sacada do poder, a esquerda brasileira ficou perplexa com a ascensão da extrema-direita e a destruição das conquistas e direitos conquistados décadas após a redemocratização. Chegou a acreditar que esse pesadelo seria temporário, mas o fato é que a extrema-direita “veio para ficar”, deixando a esquerda agora está “confusa e apática”, sem saber como reagir à altura do problema.

Liderança de esquerda, Boulos critica o autoflagelo e as críticas de progressistas que olham a situação atual como se estivessem de fora, apenas como torcedores, em vez de colocarem dentro da discussão sobre o que precisa ser feito para sair da encruzilhada.

O autor alerta que o desespero nunca é bom conselheiro, e lista alguns “atalhos” que setores da esquerda discutem como se fossem “soluções milagrosas” para o enfrentamento contra a extrema-direita, mas que são escolhas perigosas e até saídas suicidas, que a esquerda jamais deve pegar.

Os atalhos suicidas

A principal delas, segundo Boulos, é a ideia de que a esquerda deve abrir mão do protagonismo nas eleições majoritárias e aliar-se ao centro moderado, deixando-o liderar o processo eleitoral. Na prática, abrir mão da cabeça de chapas. Isso, segundo Boulos, exterminaria a esquerda e suas bandeiras ainda mais rápido e não impediria a extrema-direta de vencer a disputa eleitoral.

Ele acredita que a tendência do centro-direita é reduzir-se a pó no mundo todo (vide caso PSDB). Na era da política digital, os algoritmos favorecem a polarização entre extrema-direita e seu oposto, a esquerda. O centro moderado, portanto, não engaja nem mobiliza a sociedade. Claro, não é possível confundir isso com as alianças ou frentes amplas forjadas durante as eleições. Estas são importantes e, na visão de Boulos, pode até ter sido a grande responsável pela derrota de Jair Bolsonaro em 2022.

O segundo atalho errado seria o sectarismo, ou seja, o caminho oposto ao centrismo: radicalizar à esquerda, criando um discurso totalmente antissistema. Na visão de Boulos, se essa saída fosse viável, partidos mais radicais como o PSTU teriam sucesso nas urnas, o que nunca foi o caso. Além disso, essa “purificação” da ideologia de esquerda – que não admitira, por exemplo, alianças pontuais com o centro, nem as demandas reais da população por mudanças – é uma espécie de fuga ao enfrentamento dos problemas reais.

Segundo Boulos, a esquerda, até aqui, tem acertado em não pegar nenhum desses dois atalhos. Também não peca por falta de “horizonte”, de sonhos ou ideologia, ao contrário do que muitos dizem ou acreditam. O problema é que a esquerda, efetivamente, não consegue traduzir sua utopia para a população, nem mobilizá-la da forma que a extrema-direita faz, seja nas redes ou nas ruas.

“Alguns acreditam que falta sonho e utopia à nossa esquerda e que, por isso, perdemos a capacidade de atrair e mobilizar o povo. Não vejo assim. O que falta hoje à esquerda é traduzir a nossa utopia ao século XXI, expressá-la de forma simples e disputá-la na realidade. Estamos perdendo por WO a guerra cultural não por carência de horizonte, mas porque deixamos de traduzir e disputar esse horizonte enquanto a extrema-direita o faz todos os dias.”  “Recuperar o espírito missionário e aguerrido, que sempre foi nosso, passa por resgatar o sentido da militância de esquerda. Por traduzir esse sentido numa visão de mundo simples e mobilizadora, como fizeram nossos inimigos. E, ainda, por disputar essa visão de mundo nos territórios populares e nas redes sociais. Acredito que esse é o caminho que precisamos trilhar para sair da defensiva e derrotar o fascismo do século XXI.”  (pág 84)

Por que a esquerda está desmobilizada?

Para Boulos, a esquerda foi desmobilizada nos últimos anos por uma série de fatores, além de ter sido uma “opção política” após a chegada do PT ao poder, em 2003. Ele lembra que a esquerda sempre se mobilizou e travou lutas constantes durante o regime militar. Na geração seguinte, lutou pela democratização não só política, mas econômica e social. Com Lula eleito presidente pela primeira vez, lutou para avançar nas conquistas sociais. Mas tudo tem seu preço.

“Mas não se fica mais de uma década no governo sem efeitos colaterais. Os limites da institucionalidade e as contradições do poder foram arrefecendo o espírito de luta da esquerda, o que foi agravado ainda por uma opção política em não mobilizar a sociedade para avançar nas transformações.” (pág 86)

Para Boulos, a esquerda, hoje, tem 3 missões a cumprir:

  • Missão social: “(…) combate intransigente às desigualdades, na forma como o capitalismo as reduz no século XXI: o cassino financeiro. Esta sempre foi a razão de ser da esquerda e continua sendo.”
  • Missão civilizatória: lutar contra as formas de autodestruição humana, como o aquecimento global e o avanço sem regulação da IA. 
  • Missão ética: “disputar, de todas as formas, valores humanos e solidários”; recuperar o sentido de coletividade. 

A missão social consiste em lutar contra os bilionários e realocar o verdadeiro sentido do que é o “sistema” a ser combatido. O sistema são os bilionários do mercado e as big techs alinhadas à extrema-direita, “não Xandão, a Lei Rouanet” ou as instituições da República, ao contrário do que dizem os bolsonaristas. Mas para fazer a luta anticapitalista, não dá para fazer “pregação abstrata”. “A pauta tem que ser clara, objetiva, conectada com a vida real do povo, e que permita encurralar a extrema-direita e mostrar o quanto são parte do sistema”. (pág 101)

Exemplos de pautas concretas:

  • enfrentar as taxas de juros e agiotagem, mobilizando os trabalhadores endividados;
  • denunciar a especulação dos alimentos (fruto da lógica do mercado de derivativos) e defender a soberania alimentar;
  • lutar pelo fim da escala 6 x 1 e outros direitos trabalhistas

A missão civilizatória, segundo Boulos, é enfrentar os desafios impostos pelas mudanças climáticas e os avanços tecnológicos. Ele lembra que, para o povo que luta pelo pão de cada dia, falar de derretimento das calotas polares e suas consequências pode até soar como algo abstrato e pouco urgente. Mas estamos falando de um fenômeno que pode destruir populações. Por outro lado, a I.A. tem revolucionado o mercado de trabalho, a saúde e a segurança pública, mas tem potencial de gerar tanto ações inovadoras para o bem, quanto para o mal, deteriorando as democracias.

Para Boulos, “a esquerda é a única força política capaz de barrar o avanço da barbárie e da autodestruição humana, não por sermos redentores iluminados, mas porque não há nenhum outro campo social capaz de levar adiante o combate às mudanças climáticas, uma regulação efetiva para o uso da I.A. e a preservação de um ambiente político democrático. Nossa missão é civilizatória.” (Pág 108)

Por fim, a missão ética. Neste ponto, Boulos filosofa sobre o que é felicidade e prosperidade nos dias atuais. O capitalismo, com a guerra cultural promovida pela extrema-direita, conseguiu convencer setores da sociedade de que ser próspero é ter dinheiro, seu próprio patrimônio individual, conquistado por merecimento na concorrência contra outros trabalhadores, e que pelo caminho do consumo se chega à felicidade. Mas essa visão jamais trará felicidade plena, porque o custo do individualismo é a desigualdade, e a desigualdade sempre será motivo para a sensação permanente de insegurança entre aqueles que tiram algum proveito do capitalismo. 

“Essa individualização absoluta da prosperidade é o modelo da inversão de valores da ideologia dominante”, que foi além e inverteu também o conceito de liberdade. “Liberdade, em seu conceito elementar, é a possibilidade do uso do tempo de cada um da maneira mais autônoma possível”, aponta Boulos. Mas em um sistema capitalista que abraça a escala 6 x 1 e paga salários irrisórios perto dos lucros dos bilionários, não há liberdade: o trabalhador vive para pagar boletos. Essa falta de sentido na vida está conectada à epidemia de depressão no mundo todo.

O papel da esquerda é propor horizontes, com ações concretas, a essa “crise de destino que estamos atravessando”, e recuperar o sentido de coletividade, porque a individualidade apenas desumaniza as pessoas e mata o senso de comunidade.

Celular na mão e pé no barro: o que fazer e como fazer

A esquerda precisa “vencer a passividade”. 

“De forma simples e direta, são duas as grandes tarefas a cumprir: a batalha digital pela opinião pública e a batalha corpo a corpo nos territórios populares.”

Sobre a batalha digital, Boulos afirma que:

  1. É preciso unificar as narrativas, e dá para fazer isso com as redes sociais dos influenciadores, políticos e partidos do mesmo campo. Isso é feito nas eleições, mas o problema é que a esquerda é desmobilizada após o pleito, enquanto a direita segue organizada nas redes e com discurso unificado e sob a liderança do clã Bolsonaro, na maioria das vezes;
  2. É preciso investir na guerrilha digital, entender os algoritmos e saber como operar: conteúdo que gera indignação viraliza mais do que conteúdo positivo/propositivo. É possível apostar nisso sem apelar para as fake news;
  3. É preciso criar e manter um ecossistema de guerrilha digital próprio para a guerra cultural, que seja permanente. Para produção de programas, livros, documentários, notícias, entretenimento. Que contribua para reforçar a visão de mundo da esquerda. É o que a extrema-direita faz, por exemplo, com a Brasil Paralelo.

Para além do mundo digital, a esquerda precisa ir para o enfrentamento corpo a corpo. Boulos fala em recuperar o trabalho de base que a esquerda já soube como fazer. Explica que esse trabalho arrefeceu graças à desmobilização das Comunidades Eclesiais de Base, à consolidação das política neoliberais de FHC (que fragmentou a classe trabalhadora), à transformação das lideranças de base em parlamentares e à entrada do PT no governo, que institucionalizou a atuação de suas lideranças também.

Soma-se à isso tudo a avalanche das igrejas evangélicas, que forjaram uma rede de apoio para milhares de brasileiros vulneráveis. Hoje, as igrejas evangélicas são o elo entre o bolsonarismo e a periferia. Para Boulos, no entanto, é possível dialogar com os evangélicos, mas esse trabalho tem que ser feito no corpo a corpo.

Boulos afirma que a situação da esquerda nas periferias “não é terra arrasada” e que há iniciativas em andamento que, se não existissem, talvez, aí sim, tornariam a situação eleitoral do campo progressista ainda pior. Mas ele aponta que é preciso reforçar essas iniciativas e criar outras, ampliar. Ele cita as cozinhas comunitárias criadas pelo MTST como uma ação dentro desse resgate do trabalho de base, entre outras.

Para o autor, a ascensão da extrema-direita foi meteórica, mas tem um “limite objetivo”, que é sua própria relação com o sistema. A extrema-direita pode até ganhar eleições conquistando votos com sua guerra cultural, mas quando chega no governo, não consegue entregar o que o povo precisa, pois governa alinhada aos interesses de bilionários. Por isso, Boulos tem convicção de que a vitória da esquerda sempre será possível. A questão é o tempo. 

Ele finaliza apontando que escreveu o livro motivado pela “angústia de ver o campo progressista acuado numa das maiores encruzilhadas da história” e diz que o livro é um “chamado para a luta”. Boulos diz que a esquerda não tem mais tempo para perplexidade, apatia ou falta de esperança. Que historicamente, sempre nadou contra a maré, sempre esteve em disputas políticas. E que agora precisa se armar novamente com a “lucidez sobre o que está em jogo” e com a “grande das nossas missões”.

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Last Update: 22/08/2025