Ontem (20/08), estudantes da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) ocuparam a Câmara de Administração e Planejamento do Conselho Universitário (Consuni) e exigiram a aprovação da nova resolução de ações afirmativas. A ideia da resolução é ampliar as vagas para pessoas pretas, indígenas, quilombolas, trans e PCDs. Um salto qualitativo nas políticas de cotas da universidade, as quais estão desatualizadas e irregulares há mais de 10 anos.
Mesmo após passar por várias reuniões e câmaras do Consuni, mesmo com a mobilização estudantil que cresce cada vez mais em torno disso, a aprovação da resolução ainda encontra obstáculos. Ou, melhor dizendo, apenas um.
Em todas as reuniões do Consuni, os demais representantes docentes e discentes aprovam a resolução, exceto um. Este professor, uma pessoa com deficiência, sempre pede vista da resolução, dando negativa para a aprovação dela, pois de acordo com seu próprio parecer:
Tenho observado o desconforto com inúmeras políticas públicas que ao mencionarem justiça e igualdade são essencialmente discriminatórias. Não é à toa que na Índia as políticas de “ações afirmativas” são denominadas de “discriminação positiva”, se é que isso seja possível. Para um observador externo, essas políticas parecem não ter resolvido ou aliviado os problemas de segregação daquela nação. Aprendi esse fato histórico sobre o tema ao ler a obra de Thomas Sowell, intitulada “Ação Afirmativa ao redor do Mundo: um estudo empírico sobre cotas e grupos preferenciais” […]
Ao longo de sua justificativa para o voto de vistas, afirma que a nova proposta de política de ações afirmativas é uma ofensa à população catarinense, quando o relato dele se trata, ironicamente, de uma série de ofensas às pessoas público-alvo desta proposta.
Os equívocos, distorções e falsificações históricas neste documento de oito páginas são inúmeras e, sinceramente, é perda de tempo dissecar todo o texto, cuja fonte bibliográfica utilizada é apenas uma. Todavia, podemos desbancar com facilidade seus argumentos principais:
— As cotas são discriminatórias e criam preconceito!
Este “argumento” ignora completa e cinicamente que a discriminação contra os setores oprimidos e marginalizados da sociedade já existe e é estrutural, sendo essencial para a manutenção da ordem capitalista. O próprio vestibular coloca pessoas que partem de pontos de partida desiguais – aqueles que vieram de famílias mais abastadas e que estudaram nas melhores escolas e aqueles que vêm de famílias pobres, periféricas, muitas vezes racializadas e que, por conta disso, enfrentam desvantagens históricas. O tal do “mérito” sem igualdade de condições é apenas manutenção de privilégios da elite branca e rica.
As cotas não criam o preconceito, remediam os efeitos dele. Os dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que, após a Lei de Cotas (2012), houve aumento histórico na presença de negros e pobres no ensino superior, sem queda de desempenho acadêmico.

Ray Maria, do Coletivo Revida e militante do PSTU, na luta por cotas para pessoas trans na Udesc
Falsos argumentos
— Na Índia, Nigéria, Sri Lanka etc., as cotas causaram guerras e fracassaram!
Para esta incrível e mirabolante argumentação, o professor cita exaustivamente o livro Ação Afirmativa ao redor do mundo, do economista estadunidense Thomas Sowell, autor de opiniões conservadoras que, com base nisso, falsifica a história e descontextualiza as diversas questões sociais da luta contra as opressões.
O caso da Índia, por exemplo, envolve um sistema de castas milenar e conflitos coloniais. Reduzir isso ao efeito de cotas é simplificação das mais mesquinhas.
Ademais, na África do Sul pós-apartheid, políticas de ação afirmativa foram importantes para abrir universidades a uma população negra que antes era proibida de estudar. O mesmo vale para os Estados Unidos, onde, apesar das limitações e retrocessos recentes, ações afirmativas aumentaram o acesso de negros e latinos a faculdades de elite.
— As cotas distorcem a representatividade em Santa Catarina
O relator cita que em Santa Catarina os negros são 23% (pretos + pardos). Ora, se quase 1 em cada 4 catarinenses é negro, por que essa presença não se reflete na universidade pública? A distorção é justamente a ausência, não a inclusão.
Populações indígenas e quilombolas são numericamente menores, mas sofrem exclusão histórica e territorial. A universidade tem dever de garantir acesso específico, não proporcionalista. Se tratando das pessoas trans, os dados de evasão escolar são brutais: mais de 80% das travestis e transexuais estão fora da escola básica segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Cotas são reparação a uma exclusão concreta, não “ideologia”.
— As cotas eternizam privilégios e beneficiam poucos!
A Lei Brasileira de Cotas (12.711/2012) já previa revisão periódica – feita em 2022 – e foi mantida porque os indicadores mostraram avanços claros. Os supostos “beneficiados individuais” não são exceção: eles puxam para cima comunidades inteiras, rompendo barreiras simbólicas e materiais.
Na ocupação que estudantes fizeram no plenarinho do Consuni, este professor professou em voz alta, em tom enfático e teatral, essas argumentações. O grande mártir, o herói de uma tragédia grega!
Luta!
Faltando 20 minutos para começar a reunião do Conselho, o Coletivo Revida, junto de militantes independentes passou em salas pela FAED (Centro de Ciências Humana e da Educação) e, assim, 3 pessoas se tornaram 20 e tantos! Trouxemos mais uma turma inteira conosco!
Os demais professores representantes do Consuni não ficaram calados. Lançaram seus contra-argumentos e pediram a revisão do pedido de vista, algo que foi comemorado pelos estudantes.
Pessoas trans, pretas, neurodivergentes e PCDs da classe estudantil fizeram diversas falas com megafones no Plenarinho, denunciando o reacionarismo da universidade com relação às políticas de ações afirmativas.
Débora Marques Gomes, servidora da UDESC e mulher cega, fez falas comoventes sobre a importância das cotas, pois afinal, ela não estaria ali se não fossem elas – o que, de modo algum, a subestima ou questiona suas capacidades. Débora apareceu em no portal do Opinião Socialista (leia aqui) ao ser entrevistada para a matéria sobre pessoas com deficiência nas universidades de Santa Catarina.
Agora, a ideia é que, em 7 de outubro, sejam analisados numa próxima câmara todos os pedidos de vista e de revisão, e seja tomada uma decisão.
O Coletivo Revida enxerga a necessidade de ampliar as mobilizações ao máximo, fazer mais panfletagens, passagens em sala, manifestações, chamar todes es estudantes, professores e servidores da universidade para lotar a reunião de 7 de outubro e forçar a aprovação da resolução e ampliação das cotas.
Com orgulho e resistência, Revida é permanência! Cotas, já!
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