
França – Uma islamofobia transversal: entre laicidade, identidade e longa duração histórica
por Mohammed Hadjab
Na França, a islamofobia atravessa todo o espectro político, desde a extrema direita até setores da esquerda republicana. No campo da direita nacionalista, partidos como o Rassemblement National (antigo Front National) fazem do Islã um inimigo central, associado à imigração, ao terrorismo e ao colapso da “identidade francesa”. O discurso do “grande substituição” (grand remplacement), do escritor Renaud Camus, popularizado pelo polemista e, doravante, político Éric Zemmour, e assimilado por Marine Le Pen, tornou-se uma narrativa estruturante.
Mesmo em setores situados mais ao centro ou na direita clássica, como nos Republicanos (LR), a islamofobia se manifesta em políticas securitárias, na ênfase na laicidade como instrumento de restrição religiosa e na normalização da ideia de incompatibilidade entre Islã e República. Já em setores da esquerda, movimentos como o Printemps Républicain, representado por figuras como Amine El Khatmi, assumem abertamente uma postura hostil ao Islã em nome de uma “defesa da laicidade”, acusando comunidades muçulmanas de representarem uma ameaça aos valores seculares e universalistas franceses. Assim, tanto a direita quanto parte da esquerda contribuem para uma islamofobia transversal.
Um exemplo emblemático é o caso de Amine El Khatmi. A sua origem supostamente árabemuçulmana (marroquina) é utilizada por alguns islamofóbicos para se apresentarem como “não racistas”: argumenta-se que não há preconceito, pois, a pessoa criticada é ela própria de origem muçulmana. Esse episódio ilustra como a islamofobia pode se manifestar de forma sutil, explorando a complexidade das identidades e legitimando discriminações sob o pretexto de defesa da laicidade ou da identidade nacional.
Essa islamofobia não é apenas contemporânea: ela está enraizada no inconsciente coletivo francês como resultado de séculos de construção do “Outro muçulmano” como alteridade civilizacional. Desde o século VIII, com a Batalha de Poitiers (732) , a Primeira Cruzada (1095), passando pela Canção de Rolando de Roncesvales no século XIII — que representa o sarraceno como inimigo absoluto declarada em solo francês, a figura do muçulmano foi progressivamente cristalizada como ameaça existencial.
No plano intelectual medieval, a alteridade também se expressou na perseguição aos averoístas latinos, como Siger de Brabante e Boécio de Dácia, acusados de simpatizar com o pensamento árabe-islâmico transmitido por Averróis. Essa perseguição foi especialmente marcada pela ação de Etienne Tempier, bispo de Paris, que em 1277 emitiu a famosa proibição de 219 proposições, visando limitar doutrinas consideradas perigosas para a ortodoxia cristã. Além disso, membros da Faculdade de Artes de Paris, como Jean de Jandun, sofreram pressões para se afastar das interpretações averroístas. Mesmo filósofos cristãos como Tomás de Aquino criticaram algumas ideias averroístas, particularmente a doutrina da unidade da inteligência, que ameaçava conceitos centrais do cristianismo, como a individualidade da alma. Paralelamente, filósofos judeus como Isaac Albalag, que buscavam dialogar com a tradição f ilosófica islâmica e aristotélica, enfrentaram marginalização intelectual, sendo vistos com desconfiança por autoridades religiosas cristãs e judaicas conservadoras.
Esses episódios evidenciam como a alteridade filosófica, seja islâmica ou judaica, foi percebida como uma ameaça pela ortodoxia medieval, gerando censuras, perseguições e isolamento acadêmico, que moldaram profundamente o debate filosófico europeu da época e em particular na França.

Nos séculos seguintes, a construção do orientalismo francês forneceu bases acadêmicas e culturais para reforçar essa representação negativa do Islã. O colonialismo francês na Argélia, no Magreb e em outras partes do mundo árabe-muçulmano, seguido pelos difíceis processos de descolonização, perpetuou estereótipos islamofóbicos que marcaram profundamente as relações entre a França e suas populações de origem muçulmana. No período pós-colonial, a imigração magrebina e africana intensificou tensões internas na França, frequentemente abordadas sob a ótica securitária e cultural. A questão palestina, ao longo do século XX e XXI, também se tornou catalisadora de divisões políticas e midiáticas, reforçando visões islamofóbicas sob a retórica da “ameaça islâmica global”.
Um marco importante nesse contexto foi a Marcha para Igualdade contra o Racismo, que ocorreu entre 15 de outubro e 3 de dezembro de 1983. Partindo de Marselha, jovens de origem magrebina, principalmente argelina, marcharam até Paris para reivindicar igualdade de direitos e denunciar o racismo institucional. A manifestação culminou em uma grande marcha em Paris, reunindo mais de 100.000 pessoas e resultando na criação do título de residência de dez anos, uma conquista significativa para a comunidade.
No entanto, apesar dessas conquistas, a luta por igualdade continuou. Em 2020, o governo francês dissolveu duas organizações muçulmanas proeminentes:
BarakaCity: ONG humanitária fundada por Idriss Sihamedi, dissolvida em 28 de outubro de 2020, após acusações de envolvimento com o islamismo radical. A decisão foi confirmada pelo Conselho de Estado em 25 de novembro de 2020.
Coletivo contra a Islamofobia na França (CCIF): organização dedicada ao combate à islamofobia, dissolvida em 2 de dezembro de 2020. O governo alegou ligações com o islamismo radical, sem trazer provas, embora a associação tenha negado qualquer envolvimento com atividades terroristas. Essas dissoluções geraram controvérsias e críticas de organizações de direitos humanos, que questionaram a legalidade e a motivação política por trás dessas ações.
Além disso, instituições educacionais muçulmanas de excelência, como os Estabelecimentos privados muçulmanos Averroes e Al Kindi, que alcançaram taxas de aprovação de 100% no bacharelado em 2025, enfrentaram entraves administrativos e dificuldades operacionais, refletindo um ambiente institucional desafiador para a comunidade muçulmana na França.
A esse quadro soma-se a questão do véu islâmico, que se tornou símbolo central da islamofobia institucional francesa. A Lei de 1905 estabeleceu a separação entre Igreja e Estado, garantindo a liberdade religiosa, mas, ao longo do tempo, a interpretação dessa laicidade foi sendo direcionada contra o Islã. A partir da Lei de 2004, que proibiu o uso de sinais religiosos considerados como ostensivos em escolas públicas — tendo como alvo principal o véu islâmico —, até a Lei de 2010, que baniu o uso do véu integral (niqab, burqa) em espaços públicos, as restrições foram progressivamente ampliadas. Propostas mais recentes buscam limitar o uso do hijab em competições esportivas ou mesmo em universidades. Essas medidas mostram como partidos islamofóbicos, tanto à direita quanto em setores da esquerda, tentam reduzir cada vez mais a presença das mulheres muçulmanas na esfera privada e pública, atingindo não apenas a liberdade religiosa, mas também a cidadania dessas mulheres.
Nesse contexto histórico e político, surge a noção de “islamo-gauchisme” (islamoesquerdismo), mobilizada para atacar pesquisadores, universitários e militantes antirracistas, acusando-os de “colaborar” com uma suposta infiltração islâmica interna. Essa retórica ecoa diretamente a do “judeu-bolchevismo” do século XX, onde o inimigo era representado como interno, invisível, infiltrado e perigoso. De forma generalizada, todas as pessoas que denunciam as derivações islamofóbicas e defendem a inclusão dos muçulmanos na sociedade são rotuladas como “islamo-esquerdistas”, transformando a crítica à islamofobia em uma acusação política e ideológica.
A transversalidade da islamofobia francesa revela que o problema vai muito além do medo do terrorismo. Ela se manifesta em todos os setores políticos, desde a extrema direita até partes da esquerda republicana, e se articula por meio de discursos de segurança, de defesa da laicidade e de controle da presença muçulmana na esfera pública. Historicamente, essa islamofobia está enraizada em séculos de construção do “Outro muçulmano” como ameaça civilizacional, passando pelas guerras medievais, pela perseguição intelectual aos averoístas latinos e à marginalização de filósofos judeus que dialogavam com a tradição islâmica, pelo colonialismo francês e pelas tensões pós-coloniais. No século XX e XXI, movimentos sociais, como a Marcha para Igualdade e contra o Racismo, e organizações muçulmanas de combate à islamofobia, como o CCIF e BarakaCity, mostram a persistência de tentativas de inclusão, enquanto leis sobre o véu e a retórica do “islamo-gauchisme” evidenciam como a crítica à exclusão muçulmana é criminalizada ou estigmatizada.
Essa islamofobia estrutural e institucionalizada se reflete também em entraves à educação — como nos casos das escolas privadas muçulmanas Averroes e Al Kindi — e na marginalização social das mulheres muçulmanas, cujo uso do véu é progressivamente restringido, reduzindo sua presença na esfera pública. Todos esses elementos indicam que a islamofobia não é um fenômeno isolado, mas parte de uma geopolítica global: visões islamofóbicas semelhantes se manifestam na Alemanha, nos Estados Unidos, na Hungria, na Índia e em Israel, onde regimes ou movimentos políticos usam o medo do Islã como ferramenta de controle social e legitimação de políticas restritivas.
Para enfrentar essa islamofobia, é necessário adotar soluções múltiplas e integradas:
1. Reforço da educação inclusiva e da formação crítica sobre diversidade religiosa e cultural, desde a escola até a universidade, combatendo estereótipos e preconceitos históricos;
2. Proteção jurídica de organizações antidiscriminação e ativistas que denunciam a islamofobia, garantindo que possam atuar sem medo de perseguição política ou administrativa;
3. Revisão de políticas públicas e leis discriminatórias, como restrições ao uso do véu, para assegurar que princípios de laicidade não se transformem em instrumentos de exclusão;
4. Diálogo inter-religioso e intercultural promovido por governos e sociedade civil, fortalecendo laços entre comunidades e promovendo coesão social;
5. Cooperação internacional, aprendendo com experiências de outros países e construindo redes de resistência à islamofobia como parte de uma estratégia global de direitos humanos, de modo a enfrentar não apenas manifestações locais, mas também o impacto da islamofobia no contexto geopolítico.
Em suma, a luta contra a islamofobia não é apenas uma questão de justiça social: é um imperativo para proteger a democracia pluralista, os direitos humanos e a convivência pacífica em sociedades cada vez mais multiculturais. Reconhecer, denunciar e transformar estruturas, discursos e políticas discriminatórias é fundamental para romper o ciclo da exclusão e construir uma França — e um mundo — mais inclusivo e justo.
Infelizmente, dada a extrema-direitização da sociedade francesa e da vida política, agravada por um presidente da República, Emmanuel Macron, que frequentemente cede espaço aos extremistas de direita, e considerando os últimos sondagens que apontam a vitória da extrema-direita nas próximas eleições, o clima político na França se apresenta particularmente pessimista, tornando ainda mais urgente a mobilização contra a islamofobia e a defesa da inclusão e dos direitos das comunidades muçulmanas.
Mohammed Hadjab, analista geopolítico e internacionalista
Bibliografia
Livros
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-Scott, Joan Wallach. The Politics of the Veil. Princeton University Press, 2007.
-Abdellali Hajjat et Marwan Mohammed. Islamophobie : Comment les élites françaises fabriquent le « problème musulman ». Les frontières de l’« identité nationale » (2012) : analyse des politiques d’assimilation en France, mettant en lumière les mécanismes de discrimination envers les populations issues de l’immigration postcoloniale.
-Hajjat et Mathias Möschel, Racisme en procès (2022) : dynamiques judiciaires liées au racisme et à l’islamophobhie.
Artigos acadêmicos
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-Cesari, Jocelyne. “French Secularism and Islam: Trends and Issues.” The Review of Faith & International Affairs, vol. 6, no. 3, 2008, pp. 41–57.
-Fassin, Didier. “Policing the ‘French Muslim Question’.” American Ethnologist, vol. 40, no. 1, 2013, pp. 21–35.
-Laurence, Jonathan. “Secularism and Muslim Integration in France.” International Journal of Politics, Culture, and Society, vol. 28, 2015, pp. 5–22.
-Baubérot, Jean. “Laïcité et religion: le débat français sur le voile.” Revue française de sociologie, vol. 45, no. 2, 2004, pp. 207–236.
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