A Câmara dos Deputados aprovou nesta quarta-feira (20) o Projeto de Lei 2.628/22, conhecido como “ECA Digital”, que estabelece regras rigorosas para a proteção de crianças e adolescentes em ambientes digitais. A votação, marcada por um clima de convergência nacional em torno da infância, foi entrecortada por tentativas de interferência da bancada do PL — principal força da oposição — que, pressionada pela opinião pública e por especialistas, acabou recuando e aderindo ao consenso.
O texto, que agora retorna ao Senado para nova análise, cria um marco regulatório para plataformas digitais, exigindo mecanismos de controle parental, triagem de publicidade direcionada a menores e punições severas para empresas que descumprirem as normas. Apesar do discurso inicial de defesa da “liberdade de expressão”, os parlamentares do PL foram obrigados a engolir a derrota política diante da força moral do projeto.
O relator, deputado Jadyel Alencar (Republicanos-PI), acatou sugestões da oposição — inclusive do PL — para garantir o apoio necessário. Entre as mudanças, a substituição da figura de uma “autoridade nacional” por uma “autoridade administrativa autônoma”, evitando a ingerência direta do Executivo, e a retirada da expressão “dever de cuidado”, vista como ocasionalmente aberta a interpretações excessivas.
Apesar disso, parlamentares do PL, como Bia Kicis e Sóstenes Cavalcante, apenas aderiram ao projeto após garantias de que não haveria “vigilância generalizada” ou “censura prévia”. Um recuo tardio, que expõe a contradição entre o discurso de proteção familiar e a prática de obstrução a uma pauta essencial para milhões de famílias brasileiras.
“É uma medida civilizatória”, diz Orlando Silva, pioneiro na regulação das big techs
Nos bastidores, a bancada do PL tentou, desde o início, desacreditar o projeto, alegando que ele representaria uma “ameaça à liberdade nas redes” e abriria caminho para “censura estatal”. No entanto, o argumento — amplamente desmentido por juristas, especialistas e até por deputados da própria base — é como uma defesa velada das big techs e dos interesses de um setor que lucra com a exposição e monetização de corpos infantis.
O deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), um dos primeiros parlamentares a relatar projeto de regulação das plataformas digitais — o famoso “PL das Fake News”, intensamente obstruído pela extrema-direita — celebrou a aprovação como um divisor de águas.
“É uma medida civilizatória e o início da regulação das plataformas digitais pelo parlamento”, escreveu nas redes sociais. “PROTEJAM NOSSAS CRIANÇAS! PL 2628 HOJE! PL 2628 JÁ!”
Orlando destacou que o texto se conecta diretamente com o ECA e a Constituição Federal, reafirmando o Estado como garantidor dos direitos fundamentais. “É muito importante que a segurança seja um requisito no desenho dos aplicativos. É muito importante oferecer mecanismos para que pais e mães tenham contas de crianças vinculadas às suas”, afirmou.
“É uma medida civilizatória e o início da regulação das plataformas digitais pelo parlamento”, celebrou o deputado pioneiro na luta contra as fake news e a desinformação nas redes.
“ECA Digital” é marco histórico e resposta ao mercado predatório
O projeto, de autoria do senador Alessandro Vieira (MDB-SE), ganhou força após denúncias do influenciador Felipe Bressanim Pereira (Felca) sobre a “adultização” e sexualização de crianças em plataformas como TikTok e YouTube. Com base no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e na Constituição, a proposta exige que as empresas de tecnologia adotem “medidas monetárias” desde a concepção de seus produtos para proteger menores.
Entre as obrigações estão:
- Filtros de conteúdo com classificação etária;
- Proibição de perfilamento para anúncios direcionados a crianças;
- Mecanismos de mediação parental;
- Remoção ágil de conteúdos ilícitos mediante notificação;
- Canais acessíveis para denúncias.
Empresas que descumprirem as regras poderão enfrentar multas de até R$ 50 milhões por infração, suspensão de atividades ou exclusão de operar no Brasil. Os valores arrecadados irão para o Fundo Nacional para a Criança e o Adolescente.
Parlamento mostra convergência acima da polarização
A votação foi marcada por um raro momento de unidade no Congresso. O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB) afirmou que “proteger nossas crianças não é escolha, não é gesto de governo, não é pauta de partido. É obrigação moral de qualquer pai, de qualquer mãe, de qualquer ser humano”.
Motta também criou um Grupo de Trabalho com representantes de todos os partidos, com prazo de 30 dias para propor novas medidas legislativas sobre o tema. “Esta pauta está acima da radicalização. Ela traz convergência”, disse. O objetivo é aprofundar a regulação das plataformas e combater crimes como pedofilia, aliciamento e exploração sexual de menores na internet.
Deputados de todos os espectros — incluindo Sâmia Bomfim (Psol-SP), Maria do Rosário (PT-RS) e Otoni de Paula (MDB-RJ) — elogiaram o texto como um avanço civilizatório. “As plataformas têm responsabilidade. Não podem continuar lucrando em cima da violência”, afirmou Daiana Santos (PCdoB-RJ).
Vitória da sociedade e a razão sobre o negacionismo digital
A aprovação do “ECA Digital” é, acima de tudo, uma vitória da sociedade civil. Pressionada por denúncias como a do youtuber Felca, que expõe a sexualização precoce de meninas em plataformas como o TikTok, a população responde de maneira sofisticada. E o Congresso, desta vez, ouviu.
Deputadas como Daiana Santos e Sâmia Bomfim (Psol-SP) destacaram que as big techs não podem mais lucrar sobre a violência infantil. “As plataformas têm responsabilidade. Não podem ser territórios livres onde o crime prospera”, afirmou Sâmia.
Já a deputada Maria do Rosário (PT-RS) enalteceu o momento de unidade: “Isso não apaga nossas diferenças, mas demonstra que o Parlamento brasileiro pode viver momentos de maturidade e alta política.”
Recuo vergonhoso do PL expõe contradição entre discurso e realidade
O mais simbólico, porém, foi o recuo do PL. Após semanas de discurso inflamado contra a “censura”, o partido acabou engolindo o projeto — comemorando, inclusive, sua aprovação. A deputada Bia Kicis (PL-DF) chegou a dizer que o texto final “corrigiu os pontos de preocupação”, como se o partido tivesse contribuído para o avanço, e não tentou sabotá-lo.
A ironia é evidente: o mesmo partido que se beneficiou politicamente da desinformação e do caos nas redes sociais agora aplaude uma regulação que ele mesmo tentou impedir. O recuo não foi uma mudança de postura — o bolsonarismo dobrou-se à pressão popular.
A aprovação do “ECA Digital” é uma vitória da sociedade sobre os interesses corporativos e ideológicos que desejam colocar acima da proteção infantil. Enquanto especialistas, famílias e parlamentares de diferentes partidos se uniram em torno de uma causa justa, a oposição do PL hesitou, obstruiu e, no fim, foi obrigada a seguir o movimento da história.
O recuo não apagou a postura equivocada de quem colocou a defesa de algoritmos predatórios acima da segurança de milhões de crianças. Mas, ao menos por agora, o Parlamento mostrou que pode agir com maturidade quando o bem comum estiver em jogo.