
Foto: Sebastião Salgado/ Acervo e Memória MST
Por Priscila Ramos e Wellington Lenon
Da Página do MST
Desde sua invenção, há cerca de dois séculos, e ao longo de seu processo de democratização, a fotografia atravessou profundas mudanças em seu papel social. Foi sobretudo a partir do século XX, com a consolidação do fotojornalismo, que ela deixou de ser apenas registro de memórias individuais para se tornar um importante meio de comunicação de massas.
Nesse percurso, a fotografia passou a desempenhar uma função crucial também nas lutas do campo e na construção da Reforma Agrária. Por meio dos registros, é possível denunciar violações de direitos humanos, reivindicar garantias constitucionais e anunciar alternativas de organização popular. Cada clique se transforma, assim, em gesto político, uma linguagem visual que se soma a uma nova forma de resistência, agora não só nos territórios ocupados, mas também pelas lentes e olhares atentos que constroem narrativas de transformação, dentro e fora dos territórios ocupados.
Fotografia Sem Terra como denúncia
No Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) à fotografia ocupa um papel central na disputa de narrativas sobre a terra, o campo e a vida camponesa. Desde os primeiros registros das ocupações até os grandes encontros nacionais, marchas e feiras, ela se constituiu como instrumento de denúncia, memória e comunicação, sendo também síntese visual do projeto de Reforma Agrária Popular construído coletivamente.
Ao longo da história do Movimento, a fotografia deu visibilidade aos problemas sociais ocultados pelos meios de comunicação hegemônicos. Foi através dos olhares atentos de fotógrafos comprometidos socialmente que se registraram violências contra trabalhadores e trabalhadoras do campo, transformando imagens em documentos de luta e resistência.
É inegável a importância da fotografia como ferramenta de denúncia pública, informando à sociedade sobre violações de direitos humanos, expondo os conflitos agrários e revelando a desigualdade fundiária que marca o Brasil.
Muitas vezes, foram imagens que mobilizaram a indignação popular e romperam o silêncio imposto. Casos históricos como o massacre de Eldorado do Carajás, o massacre de Felisburgo e o assassinato de Antonio Tavares ganharam projeção nacional e internacional. Esses registros não apenas denunciam a brutalidade contra as famílias Sem Terra, mas também contribuem para construir à memória coletiva e mobilização social diante das injustiças no campo.
Massacre de Eldorado do Carajás – 1996
Um dos casos mais cruéis e emblemáticos da história da luta pela terra e da violência no campo ocorreu em 17 de abril de 1996, em Eldorado do Carajás, onde 21 trabalhadores rurais Sem Terra foram assassinados e 69 pessoas foram mutilados por policiais militares, durante uma manifestação pacífica às margens da rodovia PA-150, na altura que ficou conhecida como a “Curva do S”, no Pará.O caso ganhou repercussão nacional e internacional. Essencialmente, a fotografia cumpriu papel importantíssimo nessas circunstâncias, levando para o mundo a denúncia através de imagens fortes e desmascarando os reais culpados pela morte e brutalidade no campo.

Massacre de Eldorado do Carajás. Foto: Sebastião Salgado/ Acervo e Memória MST
Massacre de Felisburgo – 2004
No trágico episódio conhecido como Massacre de Felisburgo, ocorrido em 20 de novembro de 2004, à fotografia mais uma vez cumpriu seu papel de denúncia, após uma invasão de jagunços a mando do fazendeiro e grileiro Adriano Chafik Luedy à ocupação da fazenda Nova Alegria, em Felisburgo, município mineiro do Vale do Jequitinhonha. Neste terrível episódio de violência no campo, no Acampamento Terra Prometida, jagunços assassinaram cinco trabalhadores rurais Sem Terra à sangue frio, além de deixarem 12 feridos e as estruturas do acampamento incendiadas. No local, viviam 230 famílias que denunciavam a não função social da terra.

Assassinato de Antonio Tavares – 2000
Mais um registro da violência no campo foi captado pelas lentes da fotografia no dia 2 de maio de 2000, quando o trabalhador Sem Terra Antonio Tavares foi assassinado pela Polícia Militar do Paraná, durante uma marcha pela Reforma Agrária. Mais de 1.500 integrantes do MST seguiam em 50 ônibus rumo a Curitiba, quando foram interceptados e reprimidos com tiros na BR-277 (Km 108), em Campo Largo-PR, sem ordem judicial. O fato foi reconhecido como um ato de violência policial contra trabalhadores rurais. Antonio Tavares tinha 38 anos, deixou esposa e cinco filhos.

As fotografias e imagens em vídeo foram ferramentas fundamentais na luta por justiça pela morte de Antonio Tavares. Esses registros serviram como provas e instrumentos de denúncia, contribuindo para dar visibilidade à violência sofrida pelos trabalhadores Sem Terra.
Os registros das imagens instrumentalizaram as instâncias jurídicas nacionais e internacionais, resultando no julgamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que condenou o Estado brasileiro pela morte de Tavares. Essas imagens permanecem como provas materiais da brutalidade do latifúndio e do Estado, mas também como testemunho da resistência camponesa.

Monumento Antonio Tavares. Foto: Wellington Lenon/MST
Todos os anos, o MST realiza um ato político no monumento em memória de Antônio Tavares. O espaço, que se tornou um símbolo da resistência camponesa, foi idealizado pelo grande arquiteto Oscar Niemeyer e representa a luta por justiça e pela Reforma Agrária Popular. O monumento é lugar de memória, mística e mobilização, reafirmando que cada vida tombada na luta segue presente como semente de dignidade e transformação social.
Registro das conquistas
Nesse campo, a captura do tempo e do espaço na construção de narrativas faz com que seja enriquecedora a função da fotografia em determinados contextos. Sem dúvida, a fotografia é uma grande auxiliadora na construção da narrativa a partir de quem vive e constrói a luta pela Reforma Agrária Popular. A luta pela terra e território, a defesa da natureza, à produção de alimentos saudáveis, o plantio permanente de árvores, à mecanização da Agricultura Camponesa e Familiar, a cooperação, educação, saúde, cultura, arte e à solidariedade
A fotografia é, para o MST, uma ferramenta política. Nesse sentido, ela se coloca para o movimento Sem Terra como representação do que defendemos como projeto para o povo do campo e da cidade.
– Ocupação de terras improdutivas

Ocupação do latifúndio da Empresa Araupel, antiga fazenda Giacomet Marodin. Foto: Wellington Lenon/MST

Ocupação de fazenda improdutiva em Lagoa Santa, MST-MG. Foto: Dowglas Silva

Acampamento Herdeiros da Terra de 1º de Maio – MST-PR. Foto: Joka Madruga
– Produção de alimentos saudáveis

Doação de alimentos da campanha Mãos Solidárias, MST Pernambuco. Foto: Ana Olívia Godoy

Foto: Wellington Lenon/MST

Feira Nacional da Reforma Agrária – MST. Foto: Juliana Barbosa
– Fotografia como memória

Arquivos do Acervo e Memória do MST. Foto: Priscila Ramos
Como memória, cada retrato de assentados, marchas e mutirões de solidariedade constrói um acervo coletivo que reafirma a identidade e a trajetória da luta pela terra. A fotografia se converte, assim, em arquivo vivo de uma história contada a partir dos sujeitos do campo.
Para além da denúncia, a fotografia torna-se, nesses 41 anos de luta do MST, uma importante ferramenta de preservação da memória. Revisitar momentos que marcaram essas mais de quatro décadas até aqui é coletar fragmentos que só a fotografia nos permite.
Não há uma máquina do tempo, mas há a fotografia como cápsula de visitação de registros históricos. A preservação da memória Sem Terra serve para que as próximas gerações conheçam as histórias dos que vieram antes e pavimentaram uma estrada que, por muitas vezes, foi marcada com sangue.
Desde 2014, o MST constituiu, a partir de sua organicidade, uma Equipe de Arquivo e Memória, com o objetivo de organizar os documentos contidos na Secretaria Nacional do Movimento.
Esse trabalho resultou em uma base de dados com mais de 10 anos de acervo digitalizado. São mais de 15 mil fotografias históricas, representativas de ações desenvolvidas nacionalmente desde a fundação do MST.
Visite o Acervo e Memória do MST: https://acervomst.org.br/index.php/
*Edição: Lays Furtado