O Caçador, os Pássaros e a Desdolarização

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

A grande contribuição para a Economia como ciência dos últimos quarenta anos é admitir o fato de que o medo de perder é muito maior que a vontade de ganhar. Na vida prática de uma empresa que faz muitos negócios simultaneamente ao longo de sua vida, o risco acaba por se diluir porque dificilmente todos eles resultarão em calote, partindo do princípio de que são independentes entre si como o lançamento de dados, ou apostas na roleta. Aí cada negócio independe totalmente dos demais, sejam anteriores, sejam simultâneos. A isso os estatísticos chamam de comportamento estocástico do mercado. Apoiando-se nessa premissa, pode-se estimar a relação risco/retorno e tomar decisões milimétricas como aumentar ou diminuir a quantidade produzida, ou lançar ou não um novo produto para um portfólio já existente.

Há ramos de negócio em que não existe um portfólio constante e passível de mutações lineares como na indústria de automóveis. A indústria da moda, por exemplo, precisa lançar uma coleção por estação e usa algo muito semelhante ao método de nosso Banco Central para tomar decisões. Põe-se numa mesma sala os representantes das lojas mais significativas entre o time de clientes e os modelos são apresentados um a um. Os lojistas anotam em um papel quais deles estão fadados ao sucesso e quais estão fadados ao fracasso. Numa outra etapa, os modelos escolhidos pelos lojistas são apresentados ao time de vendas do fabricante e eles vão estimar a quantidade a ser produzida de cada item. É mais ou menos como o Boletim Focus da moda. O time de planejamento industrial vai medir quantas unidades serão gastas para fazer face ao número de peças que os vendedores esperam vender. É nesse ponto em que se decide ir adiante ou não. Se – digamos – o número esperado de vendas for de trinta mil peças e for necessário gastar o equivalente a quinze mil para fabricá-las todas, segue-se em frente. Se for preciso investir o equivalente a vinte e cinco mil peças, é melhor não brincar disso. É que fica arriscado demais. Além disso, a quantidade é fixa, não dá para produzir mais, caso todas as peças tenham sido vendidas antes do tempo, mas é possível fazer uma liquidação caso sobrem peças no fim da estação.

Um país funciona muito mais como uma indústria de confecção do que como uma fábrica de automóveis. O Estado, por exemplo, tem um orçamento a cumprir. A agricultura tem um plano de safra que não se pode mudar ao longo do ano e os contratos de importação e exportação têm que ser cumpridos de uma forma ou de outra, sob pena de execração internacional. Os resultados cambiais obtidos ao longo dos anos precisam estar absolutamente protegidos, pois sua perda pode ocasionar crises até existenciais para o país. A melhor solução é pôr esses recursos num cofre à prova de assaltos. Por muitos anos, acreditou-se que o dólar pudesse ser esse porto seguro. A questão é que os países não o têm em notas verdes, mas em títulos do tesouro estadunidense sob o pressuposto de que os Estados Unidos jamais darão calote. Caloteiros estrito senso eles não são, mas acham-se no direito de bloquear ativos de países que não se comportam como é de seu gosto. É vendo o que aconteceu com Venezuela, Irã, Afeganistão e Rússia que deixa os governos dos demais países em dúvida se, mantendo reservas em dólares, não estão pedindo para a raposa tomar conta do galinheiro.

Não há quem nunca tenha sido arguido: “Se houver dez pássaros pousados em um galho, se um caçador atirar e matar um, quantos sobram?” A resposta mais usual é nove. É nesse momento em que o interlocutor diz: “Fica nenhum porque os outros voam”. Os artigos 9º e 12º da Lei Genius promulgada por Trump em 18 de julho de 2025 garantem o poder de bloqueio de ativos por parte do governo estadunidense sem direito de defesa por parte dos atingidos. Ela funciona como a arma na mão do caçador. O bloqueio é o pássaro atingido e a revoada é desdolarização. Na verdade, esse poder de congelar parcial ou totalmente ativos estrangeiros depositados nos Estados Unidos vem sendo usado de inúmeras forma e intensidades variadas desde a II Guerra, quando o dólar tornou-se hegemônico, hegemonia esta que a Lei Genius pretende manter, desacelerando a desdolarização. Na próxima edição desta coluna, vamos estudar seu funcionamento e como se pode esperar que ela ajude a manter o poder de xerife do mundo nas nãos dos estadunidenses.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou o mestrado na PUC, pós graduou-se em Economia Internacional na International Afairs da Columbia University e é doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Depois de aposentado como professor universitário, atua como coordenador do NAPP Economia da Fundação Perseu Abramo, como colaborador em diversas publicações, além de manter-se como consultor em agronegócios. Foi reconhecido como ativista pelos direitos da pessoa com deficiência ao participar do GT de Direitos Humanos no governo de transição.

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Last Update: 19/08/2025