O Drama do 24 de Agosto: Classe, Memória e Política na Morte de Getúlio Vargas (1954)

por Erik Chiconelli Gomes

O ano de 1954 encontrou o Brasil mergulhado em uma crise política que extrapolava os gabinetes governamentais e alcançava as ruas, as fábricas e os lares das famílias trabalhadoras. O segundo governo de Getúlio Vargas enfrentava uma oposição sistemática que mobilizava diferentes setores da sociedade, revelando fissuras profundas na construção do pacto social brasileiro. A conjuntura econômica deteriorava-se progressivamente, com índices inflacionários crescentes e pressões sobre o câmbio que afetavam diretamente o poder de compra dos trabalhadores urbanos (BUENO, 2006). Esta realidade material constituía o pano de fundo sobre o qual se desenrolaria um dos episódios mais dramáticos da história política nacional, evidenciando como as lutas sociais cotidianas se articulavam com os grandes movimentos da política institucional.

A experiência vivida pelas classes trabalhadoras durante este período revela contradições fundamentais no projeto varguista. Se por um lado o governo mantinha o discurso de proteção aos trabalhadores e implementação de direitos sociais, por outro enfrentava crescente resistência dos movimentos grevistas que questionavam as limitações do modelo corporativo. As greves eram sistematicamente caracterizadas pelo aparato estatal como um “antidireito”, contrário aos princípios de harmonia entre capital e trabalho pregados pela ideologia oficial (ALVES, 2015). Esta tensão evidenciava como a política trabalhista varguista buscava controlar e canalizar as demandas operárias dentro de marcos institucionais específicos, limitando a autonomia dos movimentos sociais organizados.

O tecido social brasileiro dos anos 1950 caracterizava-se por transformações aceleradas que criavam novas identidades de classe e formas de consciência política. O processo de industrialização intensificava-se, concentrando massas trabalhadoras nos centros urbanos e criando condições objetivas para o fortalecimento da organização operária. Contudo, esta mesma expansão industrial gerava pressões inflacionárias e tensões distributivas que alimentavam conflitos sociais crescentes. A cultura política emergente combinava elementos do trabalhismo oficial com experiências autônomas de resistência e organização popular, criando um campo complexo de disputas pela hegemonia ideológica (GOMES, 1988).

A atuação do Conselho Nacional do Trabalho durante este período ilustra como as instituições estatais tentavam mediar os conflitos de classe através de mecanismos jurídicos e administrativos específicos. Desde os anos 1920, este órgão havia estabelecido precedentes na regulamentação das relações de trabalho, criando um arcabouço legal que moldaria as formas de negociação entre patrões e empregados (GOMES, 2023). Durante o segundo governo Vargas, estas estruturas institucionais enfrentavam crescentes pressões de grupos empresariais que questionavam o intervencionismo estatal e de movimentos operários que reivindicavam maior autonomia sindical.

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) constituía elemento central na conformação da cultura política dos trabalhadores brasileiros, estabelecendo não apenas direitos formais mas também formas específicas de compreender a cidadania e a participação política. Os trabalhadores desenvolviam uma relação complexa com esta legislação, simultaneamente apropriando-se de seus benefícios e criticando suas limitações (FRENCH, 2001). Esta ambiguidade revelava-se nas práticas cotidianas de resistência e negociação que extrapolavam os marcos legais oficiais, evidenciando a capacidade de criação autônoma das classes populares.

O movimento sindical do período caracterizava-se por tensões constantes entre a estrutura corporativa oficial e as demandas por maior autonomia organizativa. As lideranças sindicais navegavam entre a necessidade de utilizar os canais institucionais disponíveis e a pressão de suas bases por posições mais combativas. Esta dinâmica criava espaços contraditórios onde a resistência operária se manifestava tanto através de greves abertas quanto de formas mais sutis de não-colaboração e sabotagem cotidiana (GOMES, 2018). A experiência sindical configurava-se assim como campo privilegiado para a formação da consciência de classe, onde os trabalhadores aprendiam coletivamente os limites e possibilidades de sua ação política.

O papel da imprensa na construção da crise política de 1954 revela como os meios de comunicação funcionavam como instrumentos de luta ideológica entre diferentes projetos de sociedade. Jornais como Correio da Manhã e Tribuna da Imprensa desenvolveram campanhas sistemáticas contra o governo, mobilizando temas como corrupção e incompetência administrativa para desestabilizar a base de sustentação política de Vargas (GRILL; LOPES, 2021). Esta ofensiva midiática não se limitava aos círculos dirigentes, mas buscava influenciar diretamente a opinião das classes médias urbanas e setores organizados do operariado.

As denúncias de corrupção que dominaram o noticiário político em 1954 funcionavam como elementos de uma disputa mais ampla pela legitimidade política, opondo “getulistas” e “antigetulistas” em torno de diferentes concepções sobre o papel do Estado na sociedade. O chamado “mar de lama” constituía estratégia deliberada de erosão da credibilidade governamental, utilizando escândalos reais ou fabricados para questionar a moralidade do projeto varguista (GRILL; LOPES, 2021). Esta campanha revelava como as lutas políticas formais articulavam-se com disputas culturais mais profundas sobre valores, tradições e identidades nacionais.

A intensificação da crise política durante os primeiros meses de 1954 criava um clima de instabilidade que afetava profundamente a vida cotidiana das classes trabalhadoras. A incerteza econômica combinava-se com tensões políticas crescentes, gerando ansiedades coletivas que se manifestavam tanto em discussões de bar quanto em assembleias sindicais. O atentado da Rua Tonelero, em agosto de 1954, funcionou como catalisador destas tensões acumuladas, precipitando uma crise de legitimidade que tornaria insustentável a permanência de Vargas no poder (DELGADO, 2005).

A manhã de 24 de agosto de 1954 transformou-se em marco divisor da história política brasileira quando Getúlio Vargas decidiu pelo suicídio como forma de escape da pressão política crescente. A notícia espalhou-se rapidamente pelas ruas do Rio de Janeiro e demais centros urbanos, gerando reações imediatas que revelaram a profundidade dos sentimentos populares em relação ao presidente. A carta-testamento deixada por Vargas funcionou como último ato político, mobilizando simbolicamente as massas trabalhadoras contra seus opositores e transformando sua morte em instrumento de legitimação póstuma (DELGADO, 2005).

As manifestações populares que se seguiram ao anúncio do suicídio evidenciaram a existência de uma cultura política operária autônoma, capaz de mobilizar-se espontaneamente em defesa de seus interesses e símbolos. Os “motins urbanos do 24 de agosto” revelaram formas específicas de protesto e resistência que extrapolavam os canais institucionais oficiais, demonstrando a capacidade organizativa das classes populares (FERREIRA, 1994 apud DELGADO, 2005). Estas manifestações incluíam ataques a jornais oposicionistas, ocupação de espaços públicos e confrontos com forças policiais, configurando um repertório de ação coletiva que expressava tanto luto quanto indignação política.

A reação enfurecida dos setores populares contra os símbolos da oposição antivarguista demonstrava como diferentes grupos sociais haviam desenvolvido interpretações conflitantes sobre o significado político de Vargas e seu projeto governamental. Enquanto as classes médias urbanas e setores empresariais celebravam discretamente o fim de um governo considerado populista e irresponsável, os trabalhadores manifestavam luto genuíno pela perda de quem consideravam um protetor de seus direitos e interesses (DELGADO, 2005). Esta polarização revelava fissuras profundas na sociedade brasileira que extrapolavam conjunturas políticas específicas.

A construção da memória coletiva em torno da figura de Vargas iniciou-se imediatamente após sua morte, transformando o político controverso em mártir das causas populares. O Palácio do Catete converteu-se em local de peregrinação cívica, onde a carta-testamento era exibida como documento sagrado da nacionalidade. Esta sacralização da memória varguista funcionava como mecanismo de elaboração coletiva do trauma político, permitindo que diferentes grupos sociais processassem o significado dos eventos através de narrativas que enfatizavam o sacrifício heroico em favor do povo (SÁ et al., 2005).

As representações culturais de Vargas desenvolvidas no período posterior a 1954 evidenciam como as classes populares se apropriaram criativamente de sua imagem, transformando-a em símbolo de resistência contra a opressão social. Charges, caricaturas e manifestações do humor popular revelam formas específicas de compreensão política que combinavam elementos do folclore tradicional com análises sofisticadas da conjuntura social (FLORES, 2001). Esta produção cultural demonstra como os trabalhadores desenvolviam interpretações autônomas dos processos históricos, não se limitando a reproduzir passivamente as versões oficiais dos eventos.

O legado político do 24 de agosto de 1954 transcendeu a figura específica de Vargas, configurando-se como referência simbólica para movimentos sociais posteriores que reivindicavam direitos trabalhistas e participação política democrática. A memória deste episódio funcionou como reserva ideológica para gerações subsequentes de militantes populares, fornecendo exemplos de resistência e dignidade política que inspiraram lutas futuras. Esta continuidade histórica evidencia como os eventos de 1954 se inscreveram profundamente na cultura política nacional, influenciando formas de compreensão sobre cidadania, direitos sociais e legitimidade governamental.

Os acontecimentos daquela manhã de agosto revelaram dimensões fundamentais da experiência brasileira que permanecem relevantes para a compreensão da política contemporânea. A capacidade de mobilização popular demonstrada nas reações ao suicídio de Vargas evidenciou potencialidades democráticas que extrapolavam os marcos institucionais formais, sugerindo possibilidades de participação política mais ampla e substantiva. Ao mesmo tempo, a violência das manifestações e a polarização social que se seguiu indicavam os riscos inerentes a processos de mudança política acelerada, alertando para a necessidade de mediações institucionais mais eficazes.

A análise destes eventos sob a perspectiva da experiência das classes trabalhadoras permite compreender como os processos históricos se constroem através das práticas cotidianas de resistência, negociação e criação cultural dos grupos subalternos. O 24 de agosto de 1954 não representa apenas a morte de um presidente, mas o momento de condensação de contradições sociais mais profundas que se vinham acumulando ao longo de décadas de modernização autoritária. A resposta popular à crise revelou formas de consciência política autônoma que desafiam interpretações simplistas sobre populismo e manipulação das massas.

O drama vivido naquela manhã continua ecoando na memória coletiva brasileira como símbolo das possibilidades e limites da participação popular na construção da democracia. As lições extraídas destes eventos sugerem que os processos de democratização substantiva requerem não apenas mudanças institucionais formais, mas também transformações culturais profundas que reconheçam a capacidade criativa e organizativa das classes trabalhadoras. A experiência de 1954 demonstra como os momentos de crise política podem se transformar em oportunidades de aprendizado coletivo, desde que se preservem espaços para a manifestação autônoma da vontade popular.

A memória do 24 de agosto permanece viva como testemunho da dignidade dos trabalhadores brasileiros e de sua capacidade de resistir a projetos políticos que neguem sua humanidade e direitos fundamentais. Esta herança histórica constitui patrimônio coletivo que deve ser preservado e reinterpretado por cada geração, contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa e democrática. O exemplo de Vargas, com todas suas contradições e limitações, continua inspirando reflexões sobre as possibilidades de construção de um projeto nacional que tenha nas classes trabalhadoras seu protagonista principal, respeitando sua autonomia e capacidade de autodeterminação.


Referências

ALVES, Juliana Martins. Trabalho e trabalhadores no segundo governo Vargas: as greves como um “antidireito” (1951-1954). Revista de História, 2015. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rh/a/hq9pTLjVmsg6XwPNFQwSpbJ/. Acesso em: 06 ago. 2025.

BUENO, Newton Paulo. A crise política do final da era Vargas: uma interpretação sob a ótica da economia política neo-institucionalista. Economia e Sociedade, v. 15, n. 1, p. 129-153, 2006. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ee/a/B7qRhGYffm69F89pQTDQPNN/. Acesso em: 02 ago. 2025.

DELGADO, Lucília de Almeida Neves. Brasil: 1954 – Prenúncios de 1964. Varia Historia, v. 21, n. 34, p. 424-440, 2005. DOI: 10.1590/S0104-87752005000200013.

FLORES, Elio Chaves. Representações cômicas da República no contexto do Getulismo. Revista Brasileira de História, v. 21, n. 40, p. 179-205, 2001. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbh/a/GQ7rCDKHNFfPxLdw4vwPVqM/. Acesso em: 01 ago. 2025.

FRENCH, John D. Afogados em leis: a CLT e a cultura política dos trabalhadores brasileiros. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001.

GOMES, Angela de Castro. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: Vértice, 1988.

GOMES, Erik Chiconelli. A atuação do Conselho Nacional do Trabalho na Agenda Política para os Direitos Sociais no Brasil (1925 a 1946). Tese (Doutorado em História Econômica) – USP, 2023.

GOMES, Erik Chiconelli. O Conselho Nacional do Trabalho: uma análise de sua relação com o movimento operário da época e a imprensa. Dissertação (Mestrado em História Econômica) – USP, 2018.

GRILL, Igor Gastal; LOPES, Jonas Leite. Denúncias de ‘corrupção governamental’ e conflitos políticos no segundo governo Vargas (1951-1954). Dilemas, v. 14, n. 1, p. 33-62, 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/dilemas/a/rMqHLZsB4mqScVwxBHjd44j/. Acesso em: 06 ago. 2025.

SÁ, Celso Pereira de et al. A memória histórica de Getúlio Vargas e o Palácio do Catete. Estudos de Psicologia, v. 22, n. 2, p. 125-134, 2005. Disponível em: https://www.scielo.br/j/epsic/a/MgD64LLjPfVm4n4qFS7vg6h/. Acesso em: 11 ago. 2025.


Erik Chiconelli Gomes – Pós-Doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP). Doutor e Mestre em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Economia do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e em Direito do Trabalho pela USP. Bacharel e Licenciado em História (USP). Licenciado em Geografia (UnB). Bacharel em Ciências Sociais (USP) e em Direito (USP). Atualmente, é Coordenador Acadêmico e do Centro de Pesquisa e Estudos na Escola Superior de Advocacia (ESA/OABSP).

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Last Update: 18/08/2025