Pela primeira vez em quase duas décadas, a Bolívia não será governada por um candidato do Movimento ao Socialismo (MAS). As eleições deste domingo (17) confirmaram a derrota eleitoral do partido colocando em risco os avanços sociais conquistados no período.
De acordo com o Tribunal Supremo Eleitoral (TSE) e a imprensa local, o senador Rodrigo Paz Pereira, do Partido Democrata Cristão (PDC), obteve cerca de 32% dos votos e avançou em primeiro lugar.
O ex-presidente Jorge “Tuto” Quiroga, da Aliança Livre (ADN), conquistou 27% e ficou com a segunda vaga. Em terceiro apareceu o empresário Samuel Doria Medina, com 19,9%, seguido por Andrónico Rodríguez (MAS), presidente do Senado, que alcançou apenas 8,1%.
A Constituição de 2009 instituiu o mecanismo de segundo turno, que nunca havia sido necessário, já que o MAS sempre venceu no primeiro turno com Evo Morales ou Luis Arce.
Desta vez, o quadro mudou radicalmente: a esquerda se apresentou dividida, enfraquecida e sem competitividade, enquanto a direita se beneficiou da fragmentação progressista e da crise econômica que pressiona o país.
O TSE anunciou que o relatório completo dos resultados, incluindo a composição do Parlamento, deve ser divulgado nos próximos dias, devido ao processamento manual das atas. Até lá, o país segue debatendo os impactos de uma eleição que redefine seu rumo político.
Luis Arce reforça legitimidade do processo e pede paz
O presidente Luis Arce, que não concorreu, parabenizou a população pela participação e afirmou que seu governo garantiu um processo pacífico e transparente, mesmo diante de pressões.
Ele destacou que houve “ataques internos e externos” para sabotar a eleição, mas ressaltou que o esforço da administração foi decisivo para assegurar o direito democrático ao voto.
“Fizemos todos os esforços para garantir esse processo. Nós cumprimos!”, declarou. O mandatário reforçou sua confiança em que o segundo turno ocorrerá de forma tranquila: “Estamos confiantes de que, no segundo turno, nosso povo reafirmará mais uma vez que os bolivianos resolvem nossos problemas pacificamente.”
Arce aproveitou para marcar a importância simbólica da votação em meio ao Bicentenário da independência boliviana: “A democracia venceu! Viva a Bolívia em seu Bicentenário! Viva a nossa democracia!”
Sem mencionar diretamente os candidatos que passaram ao segundo turno, o discurso buscou reafirmar a legitimidade do processo eleitoral em um contexto de polarização e de incerteza quanto ao futuro do país. A mensagem também representou uma tentativa de preservar a imagem institucional do Estado diante da derrota de seu partido.
Divisão interna e voto nulo explicam a derrota
Para o analista Hugo Moldiz, ouvido pela teleSUR, a derrota da esquerda está diretamente ligada à ruptura do MAS e à estratégia de voto nulo defendida por Evo Morales. Ele responsabilizou o ex-presidente por ter estimulado uma opção que acabou favorecendo os adversários.
“Um dos maiores responsáveis por sua posição com o voto nulo, que terminou beneficiando a todos menos à esquerda, foi alentado pelo ex-presidente”, afirmou.
Moldiz destacou que a fragmentação de sindicatos e movimentos sociais também contribuiu para o resultado, ao romper a aliança histórica entre o MAS e a base popular. “A fragmentação social de sindicatos, de movimentos e a divisão do MAS praticamente determinou o resultado que observamos”, explicou.
Na avaliação do analista, a esquerda boliviana precisa realizar uma autocrítica profunda para compreender os fatores estruturais que levaram ao declínio.
“As forças de esquerda e o campo popular devem refletir seriamente sobre as causas estruturais, não sobre o aparente”, disse. “É preciso explorar a fundo as causas estruturais para aprender as lições e recomeçar do zero”, completou.
Segundo Moldiz, o campo popular rejeitou propostas associadas à era neoliberal de 1985-2005, marcada por privatizações e submissão aos Estados Unidos. Contudo, a falta de unidade progressista impediu que essa rejeição se traduzisse em votos suficientes para a esquerda, deixando o espaço livre para que a direita ocupasse o primeiro e o segundo lugar.
Rodrigo Paz emerge como favorito
O senador Rodrigo Paz Pereira, filho do ex-presidente Jaime Paz Zamora, consolidou-se como a principal força no primeiro turno. Em discurso diante de apoiadores em La Paz, agradeceu os votos, mas pediu cautela:
“Não ganhamos nada ainda, temos o direito de jogar uma final que se define em dois meses. Nada se ganha até que se ganhe, até que haja a assinatura da vitória.”
Ele apresentou sua candidatura como expressão de mudança e de prioridade para as maiorias sociais: “Quero agradecer aos nove departamentos, porque isto é o início de uma grande vitória, de uma grande transformação. Não é problema de um candidato, são as imensas maiorias que querem expressar sua força e um cambio renovador na pátria.”
Segundo análises, Paz construiu sua imagem política com críticas “construtivas” ao governo de Arce no Senado e ampliou sua legitimidade ao participar da convocação presidencial para garantir a transparência eleitoral, da qual seus rivais de direita se recusaram a tomar parte.
Hugo Moldiz avalia que, em eventual governo, Paz pode assumir um perfil bonapartista, cedendo às pressões da burguesia, mas mantendo vínculos precários com movimentos sociais. Ele também advertiu que existe risco de o novo mandatário abandonar o ALBA e reorientar a política externa boliviana, aproximando-se dos Estados Unidos em detrimento da articulação com os BRICS.
Quiroga aposta na estabilidade econômica
O ex-presidente Jorge “Tuto” Quiroga comemorou a classificação ao segundo turno e felicitou seu rival. “Hoje ganhou a democracia”, declarou, em tom conciliador. Ele agradeceu não apenas aos seus eleitores, mas também aos cidadãos que escolheram outros candidatos, numa tentativa de ampliar seu alcance.
Quiroga apresentou como principal desafio, caso retorne à presidência, a estabilização da economia, hoje pressionada por inflação alta e dificuldades fiscais. Rejeitou tanto a impunidade quanto a revanche: “Não darei impunidade, mas também não chegarei com sede de vingança.”
Apesar de sua retórica de moderação, Quiroga é identificado com políticas conservadoras e já defendeu medidas semelhantes às do argentino Javier Milei, incluindo cortes drásticos nos gastos públicos. Sua presença no segundo turno consolida a guinada à direita do processo político boliviano.
O contraste entre Paz e Quiroga está menos em ideologia e mais no estilo: enquanto o senador tenta se apresentar como renovador e conciliador, o ex-presidente aposta em sua experiência para liderar uma guinada conservadora. Ambos, no entanto, representam a ruptura com o ciclo progressista iniciado há quase duas décadas.
Desafios da esquerda diante do novo cenário
A exclusão da esquerda do segundo turno abre um período de incertezas sobre o futuro do projeto iniciado em 2006. O MAS, marcado pela divisão entre Evo Morales e Luis Arce, não conseguiu apresentar uma candidatura viável.
A opção de Morales pelo voto nulo contribuiu para o enfraquecimento do campo progressista e é vista como fator decisivo na derrota.
Para setores populares e analistas, a tarefa imediata da esquerda é realizar uma reflexão crítica sobre as causas da crise. O balanço inclui não apenas os erros eleitorais de 2025, mas também as tensões acumuladas entre o governo e movimentos sociais, a dependência das exportações de recursos naturais e a dificuldade em renovar lideranças.
A derrota histórica do MAS sinaliza também uma mudança na geopolítica regional. Se confirmada a vitória de Rodrigo Paz ou de Jorge Quiroga, a Bolívia poderá reconfigurar sua política externa, reduzindo o peso de alianças como o ALBA e se aproximando dos Estados Unidos e de setores empresariais que pressionam pela abertura total do mercado de lítio.
Enquanto isso, as próximas semanas serão decisivas para a reorganização do campo progressista e para a definição de estratégias que evitem retrocessos sociais diante da guinada conservadora. Como alertou Hugo Moldiz, será preciso “volver a empezar de cero” para reconstruir a unidade popular e preparar um novo ciclo de resistência.