A sedução autoritária

Por Sérgio Braga

O bolsonarismo, mais do que uma força partidária, é um campo afetivo e simbólico, ou seja, ideológico – e sua eficácia se explica tanto por suas estratégias discursivas, pelo lado da oferta, como, pelo lado da demanda, pelas carências e anseios de um eleitorado com características muito brasileiras

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Por que milhões de brasileiros se identificaram com um projeto político autoritário, marcado pelo ataque sistemático às instituições, à soberania nacional e à convivência democrática? Para entender esse fenômeno, não basta olhar para a economia ou as eleições: é preciso descer às camadas mais profundas da subjetividade, onde desejo, ressentimento e outras formas de manifestação das “ideologias práticas” dos grupos sociais se entrelaçam, para usar expressão de Louis Althusser.

O bolsonarismo, mais do que uma força partidária, é um campo afetivo e simbólico, ou seja, ideológico – e sua eficácia se explica tanto por suas estratégias discursivas, pelo lado da oferta, como, pelo lado da demanda, pelas carências e anseios de um eleitorado com características muito brasileiras.

E, mesmo levando em conta que a difusão do “populismo reacionário”, para usar a expressão de Christian Lynch e Paulo Casemiro, seja um fenômeno de natureza internacional, devemos reconhecer que o “nacionalismo da pátria alheia” propagado pelo bolsonarismo, talvez tenha agregado características especificamente caboclas ao fenômeno.

Em Freudian theory and the pattern of fascist propaganda (1951), Theodor W. Adorno analisa como regimes autoritários do século XX, como o nazismo, conquistaram corações e mentes não tanto com ideias coerentes, mas predominantemente por meio de apelos emocionais e inconscientes. O fascismo, segundo ele, opera como uma “psicanálise às avessas”: em vez de tornar o inconsciente consciente, como propunha Freud, reativa impulsos arcaicos, tais como medo, submissão, ódio ao diferente, necessidade de identificação com um grupo, para moldar comportamentos coletivos de forma regressiva.

Setenta anos depois, esse padrão ressurge, adaptado aos tempos das redes sociais digitais. O bolsonarismo, como tem analisado regularmente o colunista do jornal Folha de S. Paulo, Wilson Gomes, em vários de seus artigos publicados no jornal,[1] se organiza em torno de uma comunicação performática, baseada na polarização e no culto a um “lider”, na produção incessante de inimigos simbólicos (#LuLadrão, #XandãonoXilindró etc.) e na transformação da política em espetáculo, fatores intensificados agora pelo uso sistemático e ilimitado dos mais variados tipos de mídias digitais.

Não se trata de apenas de programa político tradicional, mas de um ambiente discursivo que mobiliza afetos e sentimentos profundos (ou ideologias práticas, como se dizia antigamente), ao lado de demandas concretas (tais como melhor segurança pública e mais responsividade por parte do Estado e da burocracia), que também devem ser decifradas e respondidas.

2.

O líder autoritário – no caso, Jair Bolsonaro e seus clones – encarna a figura de “pai brutal”, o “mito” ao mesmo tempo protetor e ameaçador, tal como descrito por Freud, na interpretação crítica de Theodor Adorno.

Essa imagem provoca uma identificação afetiva profunda em setores que se sentem desamparados ou deslocados pelas tensões inerentes ao capitalismo moderno, bem como por tentativas de regulamentar estas tensões num sentido mais igualitário: homens brancos de classe média baixa, religiosos conservadores que temem pela desagregação dos valores familiares caros ao “conservadorismo popular”, pequenos empreendedores e profissionais liberais (pequeno-burgueses) que veem o Estado como inimigo e, por motivos bem mais práticos e realistas, setores do agronegócio avessos a qualquer regulamentação ambiental ou ecológica da propriedade da terra e de seus apetites de expansão ilimitada, travestidos de “livre iniciativa” dentre outros segmentos.

O vínculo com o líder não se baseia tão somente em propostas, mas em uma intensa lealdade ideológica, ou “pertencimento emocional”, para usar a expressão adorniana: ele diz aquilo que “não se pode dizer”; ele encarna a “verdade” contra a “hipocrisia” das instituições e dos supostos “poderosos”.

É nesse ponto que o debate sobre liberdade de expressão se torna central — e delicado. Os defensores do bolsonarismo, frequentemente, apelam à liberdade de expressão para justificar discursos de ódio, desinformação, ataques a minorias, desrespeito a decisões judiciais e incitação à violência.

Mas essa defesa é paradoxal. As estratégias discursivas e os comportamentos autoritários não são somente expressão livre de opinião, mas instrumento de manipulação ideológica e erosão democrática, muitas vezes sem o equivalente direito de defesa às vítimas que são objetos de tais comportamentos e atitudes, e muitas vezes protegidos pelo anonimato, visando a intimidar e desestabilizar emocionalmente os objetos de sua ira.

A liberdade de expressão não pode ser confundida com o direito de destruir a própria democracia. Quando a fala se converte em arma para adulterar fatos sistematicamente, atentar contra a própria soberania nacional ao incitar invasões de outros países, ou instigar a violência, ela ultrapassa os limites do aceitável.

Não se trata de censura, mas de proteger o espaço público da captura por discursos regressivos e destrutivos, colocando limites ao exercício desse direito e responsabilizando civilmente seus emissores por suas consequências, embora esta não seja a única nem mesmo a principal maneira de desencarnar amplas faixas da população brasileira da adesão a crenças e comportamentos autoritários.

As lições que podemos extrair da leitura dos textos dos teóricos da democracia (conferir o conhecido “paradoxo da tolerância”, de Karl Popper) e das experiências de regimes autoritários e ditatoriais do século XX nos mostram que a argumentação racional e a tolerâncias sozinhas não bastam para desmontar sistemas simbólicos que muitas vezes operam no registro do desejo de destruição, do ressentimento e da fantasia.

E nos alertam que, se quisermos preservar a democracia, precisamos aprender a limitar os mecanismos de propagação do autoritarismo, inclusive quando ele se esconde sob o manto da liberdade de expressão, embora sua defesa continue como um dos pilares da convivência democrática.

A democracia é, antes de tudo, um pacto de convivência, digamos, “civilizada” no sentido que Bertrand Russell dá ao termo. Proteger o espaço comum da depredação simbólica e material promovidas por líderes e cidadãos autoritários não é censura: é legítima defesa, tal como a regulamentação do cinto de segurança, do direito de fumar em locais fechados e da restrição do uso de agrotóxicos nos alimentos que nutrem nossas famílias.

Nota

[1] Neste link.

Sérgio Braga é professor titular do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Last Update: 17/08/2025