da Terra é Redonda

Sobre o Brasil que queremos

por Monica Loyola Stival*

A disputa pelo Brasil não é só contra a extrema-direita entreguista, mas contra a política sem projeto que trai o futuro. Soberania significa enfrentar os inimigos internos que bloqueiam a revolução social em nome de um ‘centro’ que não existe

Há poucos dias José Dirceu publicou, no site A Terra é Redonda, um artigo intitulado “O Brasil que queremos”. Com sua sagacidade habitual, ele descreve as linhas gerais da principal pauta que temos hoje, que é a defesa da Soberania. Eu gostaria de explorar um pouco mais como essa pauta deve ou pode ser operada na disputa política interna, particularmente visando 2026. Como Dirceu afirma, o central é saber se “teremos a oportunidade de, com soberania e democracia, decidir pelo voto o Brasil que queremos construir nos próximos anos”. Quero lembrar, de modo complementar, o perigo que existe em abstrair as diferenças internas quando se evoca certo nacionalismo – soberania não se confunde com nacionalismo, aliás.

O ataque à soberania brasileira por parte dos Estados Unidos situa a extrema direita na trincheira dessa potência estrangeira, atirando com ela contra o próprio país. Porém, para tratar não apenas da oportunidade de decidir pelo voto o Brasil que queremos, mas para que o voto seja efetivamente orientado por uma posição a respeito do Brasil que se quer, é preciso também situar o chamado “centrão” na conjuntura política atual. Centrão que costuma ser, como se sabe, o fiel da balança da política doméstica. Precisamos falar tanto da traição ao país pela extrema direita quanto da traição ao país por uma direita mais ampla – uma frente ampla do congresso nacional.

Trata-se da traição que foi evidenciada pela quebra de acordo por parte de Hugo Motta em relação ao projeto do IOF – aqui importa a ideia de acordo e sustentação da governabilidade, não o mérito do decreto –, além da votação de aumento do número de deputados, posteriormente vetado por Lula. Este fato trouxe à luz a disputa social nós x eles. Em termos de teoria política, podemos dizer que está assim nomeado o espaço do político em que se organizam oposições na forma amigo-inimigo (Carl Schmitt). “Congresso inimigo do povo”, “Hugo Nem se Importa” e afins foram os termos que tornaram evidente – na “narrativa” – eixos fundamentais dos conflitos sociais do país.

Os democratas têm a tarefa de fazer com que os personagens sejam situados nas trincheiras da disputa política interna, que não é simplesmente eleitoral, mas disputa de projeto, uma disputa de futuro. Sobre este ponto, vale notar que quando o governo emplaca pautas fundamentais a grande mídia costuma dizer que esta ou aquela ação tem como finalidade “recuperar” a aprovação e crescer nas pesquisas sobre intenção de voto. Esse tipo de narrativa induz muita gente a medir as políticas públicas em termos de maior ou menor aprovação, que significaria maior ou menor possibilidade de reeleição de Lula. Assim, a grande mídia fecha qualquer debate e a percepção social a respeito do significado dessas políticas públicas, o que é muito mais profundo do que uma concorrência eleitoral, embora isso seja relevante. Mas, é relevante na medida em que o conjunto de políticas públicas é a consequência da formulação – e execução – de um projeto de país, de um projeto social, de uma perspectiva a respeito da vida das pessoas.

É nesse sentido que as disputas por pautas no congresso ficam muitas vezes reduzidas a percepções abstratas, reduzindo o jogo político ao sistema político institucional, a uma disputa por lugares no sistema político. Isso é péssimo para a democracia, para o sentido concreto de democracia, que é a abertura à disputa de poder. É preciso reconhecer que essa disputa diz respeito ao modo como as condições concretas de vida são ou não favorecidas por um determinado projeto político em oposição a outro(s).

Qualificando qualquer projeto como “ideológico” e despolitizando assim a vida social, frequentemente se exige uma imparcialidade abstrata ou “técnica” dos atores políticos (como se a especialidade técnica fosse a ausência de qualquer decisão ou ponto de vista). Esses sujeitos virtuosos despidos de ideologia seriam os heróis de um mundo mecânico em que as ações seriam desprovidas de qualquer moral – supondo então que o sujeito pode se tornar máquina, no limite. Os “moderados” ou aqueles que se localizam no “caminho do meio” seriam exemplares de um mundo ideal. É aqui que esse discurso político – que é a negação da política – encontra, querendo ou não, o “centrão”.

Se a ampla classe dos que aparecem como “sem ideologia” é caracterizada pela ausência de projeto político claro, é natural que sejam favorecidos por esse discurso antipolarização. O “centro” é um lugar relativamente neutro e seus representantes são favorecidos pelo ideal de uma política “neutra” ou mediana. Porém, menos do que fazer-se um muro inerte – já que essa não-posição é impossível, abstrata e, no limite, desumana –, seus agentes costumam deixar um pé em cada canoa. A ideia é atuar sempre conforme a situação, conforme os ventos sopram para este ou aquele projeto de país, para este ou aquele futuro – tanto faz, para eles, contanto que seu presente, política e economicamente privilegiado, esteja garantido. É o modo “pemedebista” da política institucional, diria Marcos Nobre.

Acontece que quando o jogo político se evidencia e se mostra à sociedade, quando os nomes são dados aos bois e quando é preciso apostar em um lado, em um projeto ou em outro, em uma ideologia ou em outra, na esquerda ou na extrema-direita, enfim, quando o conflito que define o político se impõe, então a imagem da conciliação, do meio e da tecnicidade a-moralizada são bloqueadas pela necessidade concreta de decisão. A conciliação de um domingo de longas reuniões não durou vinte e quatro horas, já que a canoa do governo virou com a chegada do iate da Faria Lima. E assim a traição foi operada, a quebra de um acordo político, de uma negociação que fosse capaz de estabelecer os instrumentos para o governo e seu projeto de futuro e que seriam aceitos por aqueles que não compartilham da mesma posição geral (leia-se ideologia). Afinal, foi preciso decidir conforme a elite que sustenta o sistema tal como ele é, e daí a necessidade da defesa de posição contrária ao governo – ou seja, trata-se de conflitos sociais traduzidos em disputas políticas.

Os vídeos que estampavam com grande clareza a desigualdade social, evidente na equação de impostos, e que falavam muito diretamente sobre a desigualdade entre 99% e 1% da população do país deram lugar rapidamente aos vídeos de unidade nacional – “o Brasil é dos brasileiros”. O inimigo externo é mais evidente que o inimigo interno. Sim, internamente é simples apontar aqueles que estão ao lado do inimigo externo. Entretanto, a grandeza desse conflito político não pode apagar a concretude e a relevância do conflito político e social interno. Afinal, é este conflito que efetivamente impede, como diz José Dirceu, o desenvolvimento do Brasil, essa potência que poderia “em 10 ou 20 anos, alcançar o desenvolvimento, bastando resolver problemas internos que o impedem de viver uma revolução social e tecnológica”. É preciso dar cara a quem sustenta politicamente “a concentração de renda e riqueza; a estrutura tributária; o rentismo, que se apropria da renda nacional e mantém os juros altos que inviabilizam o crédito e o investimento, uma questão política e social”. Foi isso que – pela primeira vez em muito tempo – fizeram os vídeos e debates que tomaram o país antes do avanço externo.

Acredito por isso que a linha tênue da defesa de democracia é sobretudo a maneira como vamos lidar com a disputa interna. A frente ampla que incluiu parte do centrão na canoa da democracia em 2022 foi furada a cada traição, a cada quebra de acordo, e a água está entrando e arriscando afundar o barco que nos leva a um futuro mais digno e democrático. Um futuro em que os conflitos sociais e as disputas políticas possam encontrar vazão em acordos capazes de equalizar interesses na medida do possível, e que explicitem a impossibilidade de conciliação última, deixando claro o que está em jogo e de que lado está cada jogador. A mágica é fazer isso sem desfazer a necessária aliança pela democracia que inclui na nossa frente ampla uns poucos setores da elite econômica. Será a defesa da soberania (principalmente econômica, sem super-tarifas) aquilo que poderá convencer alguns a bloquear a extrema direita posicionada geopoliticamente em favor do inimigo externo? Ao mesmo tempo, serão capazes de amenizar minimamente a desigualdade social e desbloquear assim o caminho para novas políticas públicas redistributivas? (por exemplo, pagando até 10% de imposto e assumindo uma gestão empresarial capaz de garantir a dignidade do trabalhador retirando-o de jornadas 6 x 1).

José Dirceu tem razão quando afirma que “o Brasil enfrenta uma encruzilhada: ceder à pressão externa ou defender sua soberania”. Não há dúvida de que precisamos defender nossa soberania. Porém, nós quem? A extrema direita está excluída de partida, uma vez que operou para essa pressão externa. De resto, somos um todo, uma só nação? “A escolha não é só política, mas existencial” – é urgente definir se saberemos situar os personagens da disputa interna, a moral ou ideologia inescapável de cada ator do sistema político e, acima de tudo, qual canoa ruma para um futuro melhor. Em suma, é preciso designar os inimigos do povo e não permitir que essa clareza política seja obscurecida pela totalidade coesa e sem conflitos existenciais sugerida pela ideia de nação.

*Monica Loyola Stival é professora de filosofia na UFSCar. Autora, entre outros livros, de Que sujeito somos nós? Poder, racionalidade (neo)liberal e democracia (Edufscar). [https://amzn.to/41eZjaD]

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Last Update: 16/08/2025