A laicidade do Estado como princípio: O que temos a ver com isso?
por Leonardo Silva e Gabriel Costa
A Universidade Estadual do Estado de Amendoeiras (fictícia), no Mestrado em Ciência Política, dada a considerável presença de espíritas, um terço da turma, decidiu organizar uma pesquisa com a finalidade de subsidiar a redação de um artigo para finalização de uma disciplina.
“- Kardec, se entre nós, encarnado, curtiria essa atividade”, palpitou um aluno.
Utilizando-se da escala Likert, um método no qual afirmativas são apresentadas e o respondente é convidado a emitir o seu grau de concordância com aquela frase, construiu-se um conjunto de sentenças no qual a nota zero seria discordância máxima e a nota dez seria concordância máxima. Como em qualquer instrumento de pesquisa ou aferição de opinião (pessoal) sobre dada temática, a nota cinco significa o ponto médio, ou seja, no nosso caso, nem discorda nem concorda, o ponto “neutro”. E os números entre um e quatro e entre seis e nove representam a gradação entre os pontos mínimo e máximo da escala em tela.
Assim, a turma montou na internet esse instrumento e o difundiu, focando no público formado por espíritas e simpatizantes, residentes no território nacional.
Na pesquisa, as sentenças a seguir foram apresentadas (e lhe convidamos que, ao ler cada uma delas, você anote, de zero a dez, a sua opinião, quanto à discordância total até a concordância total):
1. O Espiritismo precisa de parlamentares que o representem oficialmente;
2. O movimento espírita deve se envolver diretamente na discussão e na defesa de projetos de lei, inclusive nas atividades doutrinárias;
3. Dirigentes espiritas devem, nessa condição, emitir publicamente suas opiniões eleitorais e indicar candidatos;
4. Concursos como capelania militar ou professor de educação religiosa devem ter cotas para espíritas;
5. O Estado deve financiar as atividades doutrinárias que também envolvam ações de promoção social;
6. Ao se candidatar, o espírita deve deixar claro sua vinculação religiosa e indicar que defenderá os ideais correlatos com a doutrina espírita;
7. Espírita não pode defender nas redes sociais candidato que tenha bandeiras consideradas como anti doutrinárias, como o aborto e a pena de morte;
8. As escolas públicas deveriam ter professores ensinando doutrina espírita para a formação moral das crianças e adolescentes;
9. A arte espírita deve ser financiada por recursos públicos, como por exemplo as disposições contidas na Lei Rouanet;
10. O Estado deve proibir práticas religiosas que sejam estranhas à cultura predominante no país;
Nesse ponto do presente artigo, estimado leitor, esperamos que você tenha feito a sua análise dos dez itens acima e, conforme antes sugerido, tenha atribuído pontuação a cada um deles. Bem, se a soma das suas notas ultrapassou cinquenta pontos, talvez a reflexão que faremos aqui lhe interesse muito, que será a relação da laicidade do Estado como princípio democrático e de que forma isso dialoga com a vivência no meio espírita, pautado pelas ideias de Allan Kardec, nessa conturbada terceira década do Século XXI, onde esse debate bate à nossa porta e ingressa em nossas relações cotidianas em diversos setores ou áreas da vida.
Na história da humanidade, e olhando o universo dos países, nem sempre a religião foi algo separado do poder político. Aliás, essa laicidade pura é fictícia. A república traz com força o ideal da laicidade, da separação do poder público do poder religioso, como apregoa a nossa Constituição Federal, a despeito da menção a Deus em cédulas e da presença de crucifixos em órgãos públicos, como tribunais judiciários e repartições dos poderes Executivo e Legislativo.
No caso do Brasil, temos alguns séculos da relação intrínseca das denominações religiosas com o Estado, seja na gestão da política social em suas diversas matizes, até a inserção de dispositivos específicos de matiz religiosa em leis e a existência de partidos políticos com clara vinculação a denominações religiosas (inclusive em termos de seus estatutos constitutivos, devidamente registrados nos órgãos competentes).
O Estado é laico, mas não é ateu, asseveram alguns, em tentativas de aliviar as múltiplas intervenções dos governos nas religiões e das religiões na atividade estatal. Vale dizer que, no caso do Espiritismo, entendido para fins dessa discussão como uma denominação organizacional e prática com características religiosas, sempre se preza por, nas atividades correlatas, de forma majoritária, ter a laicidade como princípio, admitidas certas interações e correlações, algumas muito sutis.
O Estado laico é, por definição, uma forma de proteção da atividade religiosa do cidadão, entendida aqui como algo da esfera privada, bem como uma garantia do aspecto universalista e plural do Estado frente a particularizações reivindicadas por certas denominações religiosas, em uma arena de confronto e luta, dado que a esfera religiosa naturalmente permeia o poder pela sua influência em grupos e nos seus julgamentos morais e, em muitas situações, apresenta dicotomias quanto às obrigações de dar/fazer/não fazer (lembrando a disciplina da norma civil brasileira), para umas e outras religiões.
Então, por que interessa a nós espíritas essa discussão no momento atual? Primeiro, por sermos declaradamente e estatisticamente uma minoria… Segundo, por termos (pelo menos em tese, dadas as premissas contidas na Filosofia Espírita originária, a obra de Kardec) um pensamento plural e não salvacionista…
Neste sentido – sem crítica à crença de cada um e à forma como cada religião pacificamente entende a vida, o universo, os humanos e as relações “entre o Céu e a Terra” –, a pauta sobre a laicidade do Estado deve ser uma preocupação essencial para a contemporaneidade brasileira (e mundial), justamente para que não se repitam – nem em pequena escala ou efeitos – episódios anteriores da nossa história humana, em que foram balizadas as manifestações, o direito de expressão do pensamento e as organizações da sociedade com parâmetros de UMA religião, a dominante, a “oficial” do Estado, em detrimento de todas as outras. Em distintas palavras, que se garanta – como está na letra constitucional – tanto o caráter laico do Estado (de não estar associado a nenhuma conformação de natureza religiosa) como a total liberdade de expressão, assim como de organização institucional e práticas, de todas as religiões presentes na contemporaneidade, em manifestações pacíficas.
E isto, assim, deixa de ser uma questão “particularmente espírita” e passa a ser um assunto de interesse (genuíno e premente) geral, uma vez que, sempre que houver uma (ou mais) religião(ões) proeminentes e, até, “dominantes” num contexto macro, o da sociedade brasileira, as que não estiverem em posições destacadas, poderão ter limitações e impedimentos, assim como desconsiderações ou nulificações, como já se viu em períodos da nossa existência humana.
A laicidade estatal – assim como, de regra, a das questões públicas e de interesse público e do bem comum – não importa, jamais, uma marca de arreligiosidade ou falta de espiritualidade. Pelo contrário. Cada um de nós, como ser presente neste Universo, tem suas crenças (íntimas, pessoais) e as utiliza nas distintas esferas de relação em que atua. Daí a condicionar os demais, por “força” de uma religião a comportamentos decorrentes da crença de uns (mesmo em maioria numérica), afastando-se todos os demais, é algo que não (mais) pertence à pauta da vida social planetária.
Se evoluímos, enquanto raça humana para esta condição de respeito – ao menos nas nações civilizadas e democráticas – pela liberdade de convicção e de expressão religiosas, não temos qualquer interesse em voltar passos atrás…
Leonardo Silva é Doutorando em Administração (UFSC).
Gabriel Costa é Doutor em Políticas Públicas (UFRJ).
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.