Ainda sobre a situação francesa

por Daniel Afonso da Silva

Findo o martírio das eleições legislativas francesas no domingo, 07/07, a partir da segunda-feira, 08/07, o presidente Emmanuel Macron recusou a demissão de seu primeiro-ministro Gabriel Attal, partiu para os Estados Unidos, para um compromisso internacional inadiável na OTAN, e deixou as agremiações partidárias – notadamente aquelas projetadas na Nova Frente Popular (NFP) de Jean-Luc Mélenchon e na Maioria Presidencial centrista aglutinada pelo grupo Ensemble – deblaterando-se sobre o destino do país.

A NFP, desde o domingo, considera-se “vencedora” do pleito e, em assim sendo, “exige” a convocação de um primeiro-ministro desde as suas entranhas. A Maioria Presidencial, por sua parte, indica restrições de todas as ordens, inclusive, morais para a aceitação desse desígnio.

E o presidente da República, por sua vez, agindo como presidente da República, segue distante dessas querelas partidárias aguardando a fervura arrefecer. Tanto que, na quarta-feira, 10/07, ele saiu do silêncio explicando aos franceses que, nas disputas legislativas, “ninguém ganhou”. Menos ainda o partido de Marine Le Pen. E, sendo assim, a indicação do primeiro-ministro vai depender da emergência de uma identidade política harmonizada desde a variedade partidária consolidada no pleito.

Uma apreensão literal dessa apreciação presidencial da conjuntura sugere que, sim, nenhum partido nem grupo político ganhou o páreo legislativo e, consequentemente, a prudência sugere que aguarde-se a instalação e a acomodação dos partidos no parlamento para, em seguida, tentar-se localizar uma personalidade capaz de representar, harmoniosamente, a integralidade da variedade do novo legislativo francês. Essa seria uma leitura em boa-fé. Valorando as aparências e ignorando as intenções.

Avançando, então, sobre as intenções, uma análise um pouco mais sopesada conduz a uma outra compreensão – menos hesitante e mais terminativa – do resultado de domingo. Uma compreensão que aduz que, em contrário, sim, existe um vencedor das eleições. E esse vencedor foi o executivo sobre o legislativo e, portanto, a autoridade do presidente sobre a confusão política encarnada na variedade de partidos.

Para tanto, veja-se.

A decisão pela dissolução do legislativo francês adveio da percepção presidencial – e geral – da aceleração da ascensão dos adeptos e adictos do partido de Marine Le Pen na paisagem política francesa e, especial e amargamente, de sua materialização no resultado das eleições para o Parlamento Europeu no início de junho próximo passado.

Dessa sorte, tão logo esse resultado apareceu no 9/6 portando o Reagrupamento Nacional (RN) como preferência inequivocamente majoritária dos franceses, o presidente Macron exigiu uma “clarificação”. E, sobre “clarificação”, entenda-se um exame de consciência dos franceses. E, para tanto, dissolveu o legislativo e convocou a sua recomposição, em dois turnos – no 30/06 e no 07/07 – para se saber quem, efetivamente, deve governar o país.

A operação foi – desnecessário mencionar – extraordinariamente arriscada. Vendo-a com calma, ela colocou em risco a presidência Macron, o partido Renascimento do presidente, a integralidade dos partidos ao centro e a compleição moral do próprio regime político instaurado pela Quinta República Francesa, que surgiu, entre outras coisas, para contrastar o extremismo à direita e à esquerda no país.

Sim: uma operação muito arriscada, mas que, concluída e consumada, deixou tudo bem claro. Afirmou – goste-se ou não – que quem “manda” segue sendo o presidente da República e ninguém mais.

Desconsiderando esse fato, uma leitura – um tanto afoita – da situação reivindica que a NFP ganhou o pleito dos dois turnos ao chegar, relativamente, adiante no número de cadeiras conquistadas e, por isso, merece conduzir a realidade política do país.

Jean-Luc Mélenchon foi o primeiro a avançar essa compreensão já na noite do segundo turno. E, desse modo, foi também ele o mais incisivo em sugerir que a Maioria Presidencial – e, sobretudo, o presidente Macron – submeta-se a uma coabitação com o NFP, seguindo uma certa tradição política francesa inaugurada pelo presidente François Mitterrand em 1986, reiterada por ele próprio em 1993 e reabilitada pelo presidente Jacques Chirac em 1997.

Essa leitura, por afoita, revelou-se, imediatamente, destemperada. E, para se averiguar, basta-se um retorno mais detido sobre o resultado do domingo que indicou a NFP, liderada por Jean-Luc Mélenchon e pelo seu partido A França Insubmissa (LFI), aquinhoou 182 cadeiras, a Maioria Presidencial (MP), aglutinada no grupo Juntos (Ensemble), liderado por Emmanuel Macron e pelo seu partido Renascimento, conseguiu 168, a Reunião Nacional (RN), de Marine Le Pen de braço com parcelas de Os Republicanos (LR) de Éric Ciotti, conseguiu 143, o grupo dos Republicanos que permaneceu gaullista levou 46, enquanto a variedade independente à direita conseguiu 14, a à esquerda, 13, a ao centro, 6, ao passo que o partido dos regionalistas levou 4 e outras agremiações nanicas unidas, 1.

Levando-se em conta que o parlamento francês possui 577 cadeiras, esse resultado evoca, sinceramente, uma multiplicidade de interpretações e possibilidades não necessariamente favoráveis ao grupo de Jean-Luc Mélenchon.

Desse modo, descartando-se a tese da vitória da NFP, resta-se saber, então, que fazer com o resultado de domingo e como enquadrá-lo no interior da natureza da Quinta República Francesa.

A Quinta República Francesa, vale lembrar, foi fundada pelo general De Gaulle 1958 como um regime presidencial dotado de hipersensibilidade parlamentar – daí a designação/definição de regime “semipresidencial/semiparlamentar”. Essa hipersensibilidade, ao fim das contas, consiste na dimensão verdadeiramente democrática do regime que, também ao fim das contas, resta terminantemente presidencial.

Ao encontro dessa compleição presidencial – e fortemente vertical –, o próprio general De Gaulle, em seu famoso discurso de Bayeux, de 1946, antes de ser ejetado da vida política francesa para, em seguida, ter suplicado o seu retorno em 1958, indicou, peremptoriamente, que “o presidente da República escolhe o primeiro-ministro” e “ponto final”.

Esse “ponto final”, à época e hoje, queria e quer dizer muitas coisas. Mas, dentre elas, especial e sobretudo que a “autoridade” do presidente não deve, em nenhuma condição, ser posta em questão.

Essa “autoridade”, de múltiplas formas, começou a ser, claramente, posta em questão com a ascensão irresistível do RN na paisagem política francesa após as presidenciais de 2022.

Marine Le Pen, como sabido, perdera o pleito daquele ano e o presidente Macron fora confirmado no posto.

Entretanto, a integralidade da sociedade francesa seguiu insatisfeita.

Parte pelos despojos da pandemia. Parte pelo represamento do imenso mal-estar insuflado pelo movimento dos Coletes Amarelos desde o mandato anterior de Emmanuel Macron. Parte por tudo que se vive na Europa e na França desde a interiorização, na França e na Europa, da crise financeira mundial de 2008. Parte pelo choque do “não” francês à Constituição europeia em 2005. Parte pelos dissensos políticos monumentalmente extraordinários desde a chegada de Jean-Marie Le Pen ao segundo turno das presidenciais em 2002 ante o presidente Jacques Chirac. Parte pelas incongruências e incompreensões populares diante das coabitações entre frentes político-partidárias diversas em 1997-2002, 1993-1995 e 1986-1988. Parte pela frustração com a “geração Mitterrand” – essa guiada pelos protestos de Maio de 1968 e desembarcada no poder junto com o presidente François Mitterrand em 1981 – após o período Mitterrand (1981-1995). Parte pelo desemprego crescente no país desde a presidência de Valery Giscard d’Estaing (1974-1981). Parte pela morte do general De Gaulle em 1970. Parte pelo simples fato de os franceses serem franceses: ou seja, um povo permanentemente exigente e estruturalmente insatisfeito desde a decapitação do rei na Revolução.

Se isso tudo não bastasse enquanto rugosidade dos problema, tão logo se avizinharam as eleições para o parlamento europeu, Marine Le Pen e Jordan Bardella começaram a assovelar a autoridade do presidente afirmando que – em caso de sucesso do RN – o presidente deveria entregar o cargo, demitir o seu primeiro-ministro ou, na ausência das decisões anteriores, dissolver o legislativo francês.

Pois, o RN teve êxito em Bruxelas e o presidente, confrontado, escolheu dissolver o legislativo francês.

Nas semanas que se seguiram ao anúncio da dissolução no dia 09/06 – incluindo os turnos do 30/06 e do 07/07 –, a estupefação tomou conta do país.

De um lado, o RN parecia avançar irresistível para governar o país. Marine Le Pen e Jordan Bardella já se afirmavam “donos” do posto em Matignon.

De outro lado, uma variedade de lideranças políticas francesas considerava a decisão do presidente Macron uma verdadeira e imperdoável irresponsabilidade. Percebia aquela dissolução como extemporânea e, assim, sem sentido. E, assim, condenavam o chefe do executivo.

E, entre um lado e outro, o chefe do executivo, o presidente Macron, seguia incrivelmente sereno. Em muitos aspectos, feito quem aguarda para rir por último e melhor.

E, parece, ao fundo, ser o acontecido e, agora, segue ocorrendo.

O resultado – malgrado o sucesso inquestionável do RN que conseguiu 143 cadeiras no parlamento – levou o RN ao corner. Justamente o que desejava e precisava o presidente Macron.

Claro, repita-se, foi uma operação arriscada. Mas, mais que isso, traumática. Veja-se: segue-se complexo imaginar – e, agora, parece melhor nem se tentar imaginar – o que seria do presidente Macron (da França, da Europa e do mundo inteiro) caso o RN conseguisse a tão aspirada maioria absoluta ou relativa no parlamento francês.

Bom, passados os tormentos e a tormenta, resta a terrível questão: que fazer?

Antes de partir para Washington, na segunda-feira, 08/07, o presidente Macron recusou a carta de demissão de seu primeiro-min

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Última Atualização: 11/07/2024