
Saídas do desejo autoritário: o humor e a ironia (mesmo, e “se”, o humor e a ironia são captados pelo desejo autoritário)
por Eliseu Raphael Venturi
O desejo autoritário tem horror ao equívoco. Ele se alimenta de afirmações, de discursos unívocos, de gestos que performam autoridade sem hesitação. Sua linguagem é literal, seu corpo é rígido, sua escuta é sem som.
No entanto, talvez nada desestabilize mais esse desejo do que aquilo que escapa à lógica do controle: o riso. Não o riso cínico que reforça o gozo do poder, mas o riso que torce o sentido, que desnuda o ridículo do discurso sério, que revela a farsa onde só se via comando.
O humor — quando operado como travessia simbólica — não pacifica, mas desloca. E a ironia, em sua potência mais aguda, não responde, mas desmonta.
O autoritarismo não suporta o humor porque o humor não pede autorização. Ele não pergunta se pode, não espera ser compreendido, não se explica. Sua eficácia está em tocar o real por vias tortas — fazendo do duplo sentido uma forma de insurreição, do erro de linguagem um lugar de criação, da caricatura um espelho invertido da dominação.
Mas o que acontece quando o próprio desejo autoritário se apropria do humor? Quando ele imita a ironia, sequestra a sátira, ridiculariza a diferença em nome da dominação?
A resposta, talvez, esteja no gesto: não é o riso em si, mas de onde ele fala. Quando o humor emerge de uma posição de poder para humilhar o outro, não há subversão — há gozo sádico. Quando a ironia é usada para desacreditar a dor ou esvaziar o conflito, ela deixa de ser torção crítica para virar arma discursiva. O desejo autoritário é hábil: ele simula a linguagem da liberdade para esvaziá-la por dentro. Mas mesmo aí, há rachaduras. Porque o humor verdadeiro nunca se dobra completamente ao autoritário — ele sempre deixa um resto, uma ambiguidade, uma falha. O riso, mesmo pervertido, carrega em si o risco de retornar como crítica.
Talvez por isso a ironia seja tão perigosa: porque ela implica leitura. Ela exige que o sujeito não apenas escute, mas se desloque da posição de certeza. A ironia é uma linguagem para quem suporta a ambivalência. E o autoritário, por definição, não suporta ambivalência alguma. Ele precisa que o sim seja sim, que o não seja não, que o inimigo seja reconhecível e o aliado previsível. A ironia desestabiliza essa lógica porque diz algo e o contrário ao mesmo tempo — e quem ri da ironia é quem aceita que o sentido está sempre por vir, nunca dado.
É nessa dobra que o humor e a ironia podem operar como saídas subjetivas ao desejo autoritário. Não porque confrontam diretamente o poder — isso muitas vezes os torna apenas alvos fáceis —, mas porque fazem rir do que o autoritário quer que seja temido. O riso desativa o terror. Não anula a gravidade, mas a torna suportável. É por isso que regimes autoritários perseguem comediantes: não porque eles sejam perigosos, mas porque revelam que o perigo é ridículo. O poder que precisa parecer sublime não tolera a gargalhada.

Ainda assim, é preciso cuidado. Nem todo humor é libertador. Nem toda ironia é crítica. A pergunta é sempre: a quem serve esse riso? De onde ele fala? Quem o escuta?
Quando o humor reforça estigmas, quando a ironia protege privilégios, quando a sátira cala os já calados, temos o riso como aliança com o gozo autoritário, não como travessia dele. A saída, então, é sutil: não abandonar o humor, mas reinscrevê-lo como gesto ético. Um humor que inclua o próprio enunciante em seu escopo, que se ria de si, que não se pretenda superior ao outro, mas cúmplice da falha que nos constitui.
A ironia, em seu uso mais radical, não aponta o dedo. Ela oferece um espelho rachado. Ela não nomeia culpados, mas desmancha os códigos. Sua força está em desautorizar sem hierarquizar. É uma política da linguagem que zomba da própria linguagem, uma forma de resistência que se faz pelo riso, mas sem complacência. Quando bem exercida, a ironia não salva o mundo, mas impede que o mundo seja dominado sem fricção. Ela atrasa o automatismo, quebra a sequência, reintroduz o tropeço.
Por isso, talvez, seja preciso recuperar o riso como prática política. Não o riso fácil do meme domesticado, mas o riso estranho, ambíguo, que não se sabe se é choro ou libertação. O riso que escapa, que denuncia sem dizer, que toca no obsceno sem repetir a lógica da violência. Um riso que não se impõe, mas desorganiza. Que não resolve, mas expõe. Que não afirma, mas fura.
E que, mesmo quando capturado, mesmo quando usado pelo próprio desejo autoritário, ainda carrega o germe da subversão — porque o autoritário, por mais que se esforce, não pode controlar o duplo sentido e, assim, jamais ri sinceramente.
Eliseu Raphael Venturi é doutor em direitos humanos e democracia e radicado em Curitiba/PR.
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