Foto: Brigada Samora Machel

Por Brigada Samora Machel
Da Página do MST

A Brigada Samora Machel intensificou suas ações na Província Central da Zâmbia, com a realização de visitas técnicas voltadas à implementação de uma proposta estruturada de Assistência Técnica e Extensão Rural Popular (ATES). A iniciativa, inspirada em experiências latino-americanas, busca consolidar um modelo de desenvolvimento rural centrado na agroecologia, na saúde comunitária e na formação sociopolítica.

A metodologia da ATES POPULAR parte de uma concepção emancipatória da assistência técnica: ao invés de promover pacotes prontos ou soluções verticalizadas, o enfoque é na construção participativa de tecnologias apropriadas, articulando saberes tradicionais com inovações agroecológicas de baixo custo e alto impacto social. A proposta visa fortalecer os sujeitos coletivos do campo, camponeses, juventudes e mulheres, como protagonistas do processo produtivo e político.

As atividades desenvolvidas seguem três eixos integrados:
(1) Diagnóstico participativo e construção de planos de ação em conjunto com as famílias agricultoras;
(2) Oferta de formação prática e continuada em temas como manejo ecológico de solos, controle biológico de pragas, biofertilizantes, plantas medicinais e organização produtiva;
(3) Presença territorial constante das equipes de campo, garantindo acompanhamento direto e vínculo orgânico com as comunidades.

Foto: Brigada Samora Machel

Diagnóstico da realidade agrícola de Shibuyunji: dependência de insumos, monocultivo e fragilidade socioeconômica

Durante visita técnica no território às propriedades agrícolas da região de Shibuyunji, foi possível observar uma preocupante dependência dos agricultores em relação ao mercado de insumos agrícolas. Estima-se que mais de 90% da renda gerada pela produção rural seja destinada à aquisição de sementes, fertilizantes, defensivos químicos e demais insumos externos, restando apenas cerca de 10% para suprir as necessidades básicas das famílias agricultoras.

Em muitos casos, essas famílias são compostas por 5 a 10 membros, valor significativamente superior à média brasileira, o que agrava ainda mais a pressão econômica sobre o recurso restante. Um agricultor local relatou, por exemplo, uma receita mensal aproximada de 60.000 Kwachas, dos quais apenas 10.000 Kwachas (cerca de 16,6%) ficam disponíveis para alimentação, educacao, saude, vestuário e outras despesas essenciais.

Outro fator digno de destaque é a predominância do monocultivo voltado para o mercado local, o que torna os agricultores ainda mais vulneráveis às flutuações de preços e à dependência de compradores. Essa estratégia, apesar de atender às demandas comerciais, compromete a diversificação alimentar nas propriedades e aprofunda o ciclo de fragilidade socioeconômica e dependência estrutural.

Impactos ambientais: irrigação por sulcos e ausência de manejo técnico

Durante a visita, observou-se o uso da irrigação por sulcos, técnica que, sem manejo adequado, pode provocar sérios impactos ambientais. O excesso ou a má distribuição da água favorece a erosão, arrastando a camada superficial do solo, rica em matéria orgânica, o que reduz a fertilidade e contribui para o assoreamento de rios e lagos. Além disso, o uso indiscriminado de fertilizantes e agrotóxicos, sem orientação técnica, aliado ao escoamento superficial e à infiltração, pode contaminar lençóis freáticos e corpos d’água, comprometendo a qualidade da água e afetando os ecossistemas.

Essas práticas revelam não apenas limitações produtivas, mas a ausência de políticas públicas de apoio técnico, infraestrutura básica e acesso a crédito rural. Mesmo em condições melhores que outras regiões, os produtores locais continuam sem alternativas viáveis, sendo obrigados a recorrer a conhecimentos empíricos como única forma de garantir a sobrevivência familiar.

Aspectos sociais: mão de obra feminina e infantil

Outro aspecto observado foi a forte presença de mulheres e crianças nas atividades agrícolas, sobretudo na colheita. Essa força de trabalho, por vezes invisibilizada, é frequentemente escolhida por representar mão de obra mais barata. Em casos acompanhados, o pagamento era feito por produção: 10 Kwachas por saca de jiló colhida, com média diária de 10 sacas, resultando em 100 Kwachas por dia (aproximadamente R$24,00).

O cenário expõe uma clara precarização das relações de trabalho no campo, com ausência de garantias mínimas e condições dignas, especialmente para os grupos mais vulneráveis. A falta de acesso a emprego formal, educação de qualidade e formação técnica aprofunda o ciclo de exploração e limita perspectivas de mudança estrutural.

Foto: Brigada Samora Machel

Construindo um Novo Paradigma de Desenvolvimento Rural

Experiências já consolidadas em Lusaka (Kasupe), Shibuyunji e Kabwe desde 2023 demonstram a viabilidade e os impactos positivos da proposta. Nessas localidades, a Brigada já realiza oficinas de formação, produção de insumos agroecológicos, dias de campo, mutirões de saúde e rodas de conversa política, articulando temas como soberania alimentar, saúde integral e educação popular.

Agora, a proposta de ATES POPULAR sistematiza essas práticas, conferindo intencionalidade metodológica e capacidade de expansão territorial. Mesmo diante da ausência de políticas públicas estruturadas, a iniciativa representa um passo concreto na construção de um novo paradigma de extensão rural, baseado na realidade local, voltado à transição agroecológica e sustentado por uma estratégia política de transformação social.

A proposta da Brigada Samora Machel demonstra que é possível construir uma nova abordagem de assistência técnica, comprometida com a autonomia dos povos, com a justiça social e com a defesa dos bens comuns e que a agroecologia, longe de ser apenas um método produtivo, pode ser um instrumento de emancipação coletiva e construção de poder popular.

A saúde também entra na roda

Na mesma jornada em Shibuyunji, a Brigada levou às comunidades a Popular Mobile Clinic, uma clínica itinerante organizada por militantes da saúde popular, que ofereceu atendimentos gratuitos, checagem de sinais vitais e atividades educativas sobre diabetes e hipertensão. Mais de 160 pessoas foram atendidas, a maioria mulheres com quadros elevados de pressão arterial.

Esses dados não são aleatórios: refletem o peso desproporcional que a crise econômica impõe às mulheres, especialmente entre 35 e 55 anos, que carregam, muitas vezes sozinhas, a responsabilidade pela alimentação, saúde e educação dos filhos. “É muita coisa pra uma mulher só dar conta”, disse uma moradora, ao relatar o estresse constante provocado pela dificuldade de garantir o básico.

Durante as escutas realizadas na clínica, os moradores denunciaram a ausência de medicamentos nos postos de saúde e a cobrança para exames simples, como o de glicose, cujo valor chega a 20 kwachas, um custo insustentável para famílias já empobrecidas.

Para além dos atendimentos, a ação integrou a formação política e organizativa. O companheiro Raphael Chiposwa, coordenador da politica educacional do Partido Socialista de Zambia, conduziu um momento formativo com lideranças distritais, reafirmando que cuidar da saúde do povo também é disputar os rumos do país.

Foto: Brigada Samora Machel

Construir redes, articular forças

O desafio colocado é enorme. Não se trata apenas de levar assistência ou serviços pontuais. A missão da brigada é tecer redes de solidariedade, fortalecer sujeitos coletivos e construir, com base na realidade concreta, uma outra lógica de desenvolvimento, que respeite a vida, a terra e a autonomia dos povos.

Por isso, a proposta de ATES POPULAR  precisa ser compreendida como parte de uma estratégia maior, que envolve formação política, articulação entre organizações populares, mobilização de lideranças comunitárias, religiosas, tradicionais e a busca por apoios técnicos e financeiros, dentro e fora do país.

A experiência acumulada nas localidades de Kasupe (Lusaka), Kabwe e Shibuyunji já demonstra que é possível. Oficinas agroecológicas, mutirões de saúde, círculos de educação popular e dias de campo mostram que, mesmo sem política pública estruturada, é possível plantar um novo modelo. E, como ensina a prática: o que a gente planta com o povo, floresce com força.

Contraponto à 97ª Agricultural Show: duas Zâmbias em disputa

Enquanto as elites do agronegócio celebravam a 97ª edição da Agricultural and Commercial Show em Lusaka, em comemoração ao Dia do Agricultor, nas zonas rurais como Shibuyunji a realidade era bem diferente. A feira, marcada por discursos sobre modernização e crescimento econômico, deu visibilidade a um modelo agrícola voltado para a exportação, dependente de tecnologias caras, sementes híbridas e fertilizantes industriais, inacessíveis para a maioria dos pequenos produtores. O evento destacou empresas multinacionais, mas invisibilizou o cotidiano do agricultor camponês, que produz sem apoio, sem assistência técnica, e ainda enfrenta a precariedade dos serviços públicos mais básicos, como saúde e educação.

Foto: Brigada Samora Machel

Essa discrepancia expõe duas Zâmbias: uma vitrine institucional voltada para os interesses do mercado global, e outra que resiste nos campos e nas comunidades, buscando alternativas reais para viver e produzir com dignidade.

A Brigada Samora Machel atua justamente nesse segundo campo o dos esquecidos, propondo uma agricultura centrada na vida, na soberania alimentar e no protagonismo dos povos. A agroecologia aqui não é vitrine: é prática cotidiana, ferramenta de resistência e horizonte político.

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Last Update: 14/08/2025