O Brasil concentra hoje 47,7 milhões de pessoas que se declaram evangélicas, o triplo do que havia em 1991, representando 26,9% da população. Os números divulgados em junho pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), resultado do Censo de 2022, revelam a continuidade de um processo profundo e contínuo da transição religiosa que, há pelo menos 30 anos, atravessa o país.

Esse processo tem reflexos sociais, econômicos e, claro, políticos. E foi justamente sobre esse último aspecto que a diretora Petra Costa (“Democracia em Vertigem“) se debruçou em seu último documentário para tentar explicar a ascenso do bolsonarismo e da extrema direita, “Apocalipse nos Trópicos”, uma produção da Netflix.

O título já sugere a tese implícita no documentário: a extrema direita que resultou na eleição de Bolsonaro, e que impulsionou a tentativa de golpe no fatídico 8 de janeiro, tem por trás a articulação de líderes fundamentalistas que manipulam uma massa de fieis em torno a um movimento chamado “dominionismo”, ou “teologia do domínio”, que, grosso modo, prega a ocupação de espaços do poder rumo à instauração de uma espécie de teocracia cristã no Brasil.

As imagens que ilustram fartamente o documentário parecem corroborar essa tese. Da eleição de Bolsonaro, passando pela pandemia, a eleição de André Mendonça ao Supremo Tribunal Federal, até a tentativa de golpe, são enquadrados num contexto religioso, como uma batalha épica espiritual contra as trevas e o diabo. Se as imagens, todas reais, parecem sustentar esse discurso, é preciso, porém, discutir justamente o que está por trás das câmeras, o que veremos mais adiante.

Críticas e controvérsias

“Apocalipse nos trópicos” segue o formato de “Democracia em Vertigem”. Narrado em primeira pessoa, seu “gancho” é justamente a perplexidade de Petra Costa diante da ascensão do movimento evangélico e sua imbricação com o bolsonarismo e o Estado. Assumindo sua ignorância sobre o tema, a diretora traça uma narrativa que leva o espectador a acompanhar sua “pesquisa”, tentando conferir uma certa legitimidade em seu discurso. “Sabia pouco sobre os evangélicos, só sabia que em toda rua sem pavimento e serviços públicos havia uma igreja evangélica”, narra.

Para entender esse processo, ela recorre à Bíblia e, mais especificamente, ao livro de Apocalipse. Mais especificamente ainda, a uma leitura de Apocalipse que daria base à teologia do domínio. A figura central escolhida para dar voz a esse movimento foi a do pastor Silas Malafaia, líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo (Avec), que acompanhamos ao longo de todo o governo Bolsonaro, com alguns “flash” do passado, como o apoio do pastor ao então candidato Lula, em 2002.

Nisso, que talvez seja o ponto mais interessante do documentário, podemos ver a desenvoltura dessa criatura abjeta em seu acesso ao gabinete de Bolsonaro. Numa cena, Petra acompanha Malafaia em seu jatinho para Brasília, a fim de “jogar conversa fora” com o então presidente Bolsonaro. Entramos em sua intimidade no café da manhã, enquanto ele discorre sobre como transformou a igreja herdada do sogro numa potência religiosa. Ou sua índole violenta ao ser fechado no trânsito por um motoqueiro.

Todos os elementos estão, então, postos: os evangélicos tiveram um crescimento vertiginoso no último período, apoiaram em massa o bolsonarismo e um pastor que, explicitamente, defende a influência religiosa na política, tem acesso livre a Bolsonaro e, mais que isso, o aconselha e ainda se mostra como um articulador político até mesmo diante do Congresso Nacional. O que escapa dessa narrativa?

Três críticas principais se seguiram ao documentário. Uma delas afirma que Petra desconsidera o encolhimento do catolicismo. Isso é um fato, mas que, de certa forma, não resolve a questão. Se o Brasil, historicamente de ampla hegemonia católica, passa por um crescimento do movimento evangélico, é meio óbvio de onde eles estão vindo.

Outra crítica refere-se à escolha de Malafaia como porta-voz da população evangélica, e essa crítica sim tem fundamento. Embora a Assembleia de Deus seja a maior denominação pentecostal do país, a vertente liderada por Malafaia está longe de ser hegemônica. Mais do que isso, o próprio pastor acumula ampla rejeição entre parte significativa dos próprios evangélicos, entre outras coisas, justamente por sua atuação política.

A contraposição mais séria ao documentário, porém, é a de que ele simplifica o fenômeno evangélico, considerando essa vertente do protestantismo como uma massa homogênea e facilmente manipulável. Neste caso, em prol da tal “teologia do domínio”, instrumentalizada pelo bolsonarismo e a extrema direita. Petra Costa, tal como um Jessé de Souza e seu “pobre de direita”, ilustra um “pobre evangélico fundamentalista de extrema direita”, arregimentado em favor de um projeto teocrático.

Evangélicos: quem são?

Em determinado momento do documentário, Petra expressa uma contradição entre o Jesus clamado pelo bolsonarismo e a figura de “amor e perdão” narrado pela Bíblia. “No início me parecia estranho que o mesmo Jesus que pregava o amor e o perdão podia ser usado pra justificar um governo com tão pouca empatia“. Numa tentativa frustrada de resolver isso, recorre à leitura de Apocalipse na qual um Jesus vingativo viria para julgar de forma impiedosa a humanidade.

Não precisaria ir tão longe para achar tal contradição no “livro sagrado”. Numa das cenas iniciais do filme, o folclórico Cabo Daciolo, então deputado federal, presenteia a equipe do documentário com uma Bíblia, e faz uma ressalva: “Começa pelo Novo Testamento“. Se tivesse seguido o conselho do pastor-deputado, Petra teria lido logo no primeiro livro, Mateus, a seguinte passagem: “Não pensem que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada“.

Não se encontra explicação, portanto, do fenômeno evangélico, e seu desenvolvimento e contradições, na Bíblia, mas na realidade concreta, e, especialmente no Brasil, na realidade e trajetória vivida por milhões de pessoas desde o processo de urbanização até a crise do neoliberalismo nos últimos anos. Como afirma o pesquisador Juliano Spyer em seu livro “Povo de Deus – Quem são os evangélicos e por que eles importam”, “no contexto brasileiro, o crescimento evangélico segue o fluxo das migrações das zonas rurais para as cidades, ganha velocidade justamente em meados do século 20, e acelera nas três décadas finais”.

Milhões de migrantes chegavam aos grandes centros urbanos encontrando uma situação precária, uma pobreza crescente e sem qualquer rede de apoio. Neste contexto, como explica Spyer, “as igrejas evangélicas funcionam como estado de bem-estar social informal ocupando espaços abandonados pelo Poder Público“. Ou seja, apesar do individualismo liberal que é uma marca importante do movimento pentecostal, as igrejas cumpriam uma função não só assistencial, mas uma rede de apoio mútuo, inclusive na questão do alcoolismo e do vício em drogas entre os setores mais marginalizados.

Não é por menos, neste sentido, que a maior parte da população evangélica tenha sido sempre composto por jovens, negros, mulheres, em geral das camadas mais pobres. E, da mesma forma, tenha sido estigmatizada por décadas. Um exemplo desse estereótipo do evangélico sempre associado à direita, ao atraso e ao obscurantismo é dado pelo próprio documentário. Petra Costa contrapõe a Teologia da Libertação da Igreja Católica, com seu discurso progressista, ao anti-comunismo e conservadorismo propagados por “missionários” norte-americanos financiados pelo próprio governo dos EUA. O grande exemplo é dado pela excursão evangelista do pastor Billy Graham, que, em 1974, lotou estádios sob os auspícios da ditadura militar brasileira.

A realidade, porém, é mais complexa que isso. Anos antes, ainda em 1962, lideranças e fieis evangélicos realizavam a “Conferência do Nordeste”, em Recife, com 160 delegados de 20 estados e 16 denominações. O tema? “Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro”, com a participação de convidados como Paul Singer e Celso Furtado. Após o golpe, pastores e bispos protestantes foram presos, perseguidos e torturados. Rubem Alves, então pastor presbiteriano, foi perseguido e obrigado a se exilar.

Evidentemente que, num grupo que não chegava a 4% da população, tal movimento não teve o impacto e a repercussão da Teologia da Libertação. Mas mostra que, assim como a Igreja Católica não contou com um consenso em favor da ditadura militar, tampouco entre os evangélicos não houve resistência.

O que chamamos de “evangélicos”, assim, é uma míriade de movimentos, denominações e ideologias tão contrastantes entre si como a própria Igreja Católica. Das chamadas igrejas protestantes históricas, às pentecostais (instaladas no Brasil no início do século), e as mais recentes neopentecostais, muitas vezes com intersecções entre elas. Com a diferença de, por não ser centralizada, contam com uma flexibilidade de organização, formação de lideranças e adaptação que possibilitaram sua expansão, principalmente em períodos de grande transformação social e política.

Uma verdade inconveniente

Entender a complexidade do movimento evangélico, porém, não significa idealizá-lo. A maioria dos evangélicos hoje, hegemonizada pelo neopentecostalismo, identifica-se sim com a direita e a extrema direita. Porém, não se trata de uma escolha irracional, ou simples manipulação política, ideológica e religiosa. Entender a adesão de quase 30% da população a esse movimento, no entanto, implica em entender o papel que alguns setores cumpriram e que Petra Costa, do alto de seu apartamento no Leblon, enxerga com “vertigem”.

Assim como o pentecostalismo cresceu e ganhou força com a migração em massa aos centros urbanos, os movimentos neopentecostais, agora em grande parte organizados em igrejas com verdadeiras estruturas empresariais, expandiram-se nos anos de neoliberalismo, precarização e uma profunda insegurança social. A chamada “teologia da prosperidade”, que é vista de forma caricata como uma ambição pequeno-burguesa de “ficar rico”, traduz-se para as populações mais empobrecidas como, simplesmente, garantir o mínimo de estabilidade social e econômica, e dignidade.

E, de fato, pesquisas mostram que a “conversão” do fiel, concretamente, significou uma relativa melhora de vida dentro de um contexto de empobrecimento crescente. Seja tirando da marginalidade, do vício ao álcool ou em outras drogas, como até mesmo conferindo um sentido de vida e perspectivas de sobrevivência num mundo em que o trabalho formal, estável, tradicional, torna-se cada vez mais escasso. Dentro disso, a ideologia do empreendedorismo, contraditoriamente, é abraçada e ganha impulso por esse setor.

O processo de decadência econômico e social pelo qual o Brasil atravessou, e vem atravessando, dentro de um panorama de rebaixamento na divisão internacional do trabalho, seguido pela pulverização dos direitos trabalhistas, e ataques sucessivos aos direitos sociais, é o campo fértil para a expansão exponencial das denominações evangélicas, fundamentalmente as que seguem a “teologia da prosperidade”. Principalmente quando não se tem qualquer perspectiva de organização enquanto classe trabalhadora.

E a verdade incômoda é que o PT cumpriu um papel de primeira ordem nisso, em vários aspectos. Primeiro, fulminando a consciência de classe ao defender, e impor, governos de colaboração de classes, difundindo a ideia de que os interesses dos trabalhadores e dos patrões são os mesmos. Depois, através de uma política econômica social-liberal que, apesar de concessões sociais em períodos de bonança, não trouxe qualquer mudança estrutural (e aqui cabe um parêntesis – durante os governos do PT a população carcerária teve uma explosão – e quem atua de forma sistemática e permanente dentro dos presídios?). Pelo contrário, ao longo dos anos aprofundou a dependência e a entrega do país.

Finalmente, diretamente através de acordos e alianças com lideranças pentecostais e neopentecostais que, efetivamente, ajudaram a legitimar e fortalecer esses atores e o fundamentalismo. O apoio de Malafaia a Lula lá em 2002 não foi um caso isolado. O pastor-deputado e uma das principais lideranças evangélicas, Marco Feliciano, dividiu o palanque com a então candidata Dilma Rousseff, em 2010 e ainda em 2014. Em 2011, o chamado “kit gay” (projeto de material de combate à LGBTfobia nas escolas públicas) foi abandonado pelo governo do PT num acordo com a Frente Parlamentar Evangélica (em troca da manutenção do então ministro da Fazenda, Antônio Palocci, no cargo). Em 2014, a então candidata Dilma discursou, num encontro de mulheres da Assembleia de Deus: “O Estado é laico, mas feliz é a nação cujo Deus é o Senhor”. Já na primeira eleição, a candidata havia divulgado a “Carta ao Povo de Deus”, no qual acena a pautas “de costumes”, como a rejeição ao aborto.

O PT, assim, ao mesmo tempo em que atuou para, embaixo, construir as condições nas quais o movimento neopentecostal se expandiu, em cima legitimou o discurso conservador, e projetou as figuras que, com o déblace do governo petista, se colocariam como alternativa de poder. Mas, desta vez, trazendo em seu arsenal, de forma mais explícita, o discurso de extrema direita difundido por anos por propagandistas como Olavo de Carvalho no Brasil.

Uma explicação fácil e, portanto, errada

Uma cena do próprio documentário de Petra Costa mostra esse processo. “O que você está estudando na universidade ou no Ensino Médio, o que está sendo ensinado? É o marxismo cultural, a Escola de Frankfurt“, discursa um raivoso Malafaia, já devidamente “bolsonarizado”. Marxismo cultural, “ideologia de gênero”, pânico moral, toda a pauta que se gestava por baixo explode, enfim, como uma bomba atômica, monopolizando por vezes o próprio debate eleitoral.

Não é sem razão, portanto, que parte significativa da população evangélica, premida por uma situação de crise e instabilidade, sem referência de classe, cuja ideologia do empreendedorismo já havia sido assimilada, assuma essa perspectiva. O evangelismo de extrema direita percorre, assim, o mesmo trajeto que a própria extrema direita como um todo, criando uma espécie de “nacionalismo-cristão” fundamentalista que é tão bem representado em “Apocalipse nos Trópicos”.

Existe o “denominionismo” enquanto estratégia de impor um Estado teocrático no Brasil? Sim, e o próprio Malafaia o explicita. Ele é o responsável pelo ascenso de um fundamentalismo evangélico de extrema direita e o bolsonarismo, como leva a crer Petra Costa? Não, sua causa é bem mais “terrena” do que uma conspiração apocalíptica traçada a quatro paredes. Mas é muito mais fácil recorrer a certas teorias da conspiração e à estereotipação dos evangélicos, principalmente por ser uma população composta majoritariamente pelos mais pobres, por negros, jovens e mulheres.

Esse olhar preconceituoso, de cima para baixo, continua considerando os evangélicos como uma massa manipulável, instrumentalizada em períodos eleitorais. O “diálogo” com essa população, nessa perspectiva, como muitos na esquerda defendem, não se dá sobre fatores e situações concretas, mas capitulando aos aspectos mais atrasados da consciência, como a LGBTfobia, ou negando os direitos reprodutivos das mulheres. Discussões como o fim da Escala 6×1, por exemplo, que atinge em cheio parte significativa dos evangélicos, e que poderia furar essa bolha, não é considerada.

A grande massa dos evangélicos no Brasil são operários, trabalhadores precarizados, jovens negros da periferia, mulheres pobres chefes de família, que, longe de serem “alienados”, atuam de acordo com suas necessidades mais imediatas, dentro da dura realidade que sobrevivem.

Mas isso Petra Costa, que continua enxergando a realidade em “vertigem”, não é capaz de perceber.

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Last Update: 12/08/2025