Trata-se da pedagogia do esquecimento, avessa ao pensamento crítico e hostil à pluralidade de interpretações; prevalecem o apagamento e a distorção

Por Francivaldo Nunes, Marcos Leitão de Almeida e Everaldo Andrade, na Folha de S. Paulo

As recentes ações do governo de São Paulo, somadas ao avanço de discursos reacionários e à pressão de grupos extremistas sobre a liberdade de ensino e a atividades dos profissionais da história, remetem a um cenário distópico que parece saído das páginas de “1984”, de George Orwell.

Na obra, o protagonista Winston trabalha no Ministério da Verdade, onde documentos do passado são incinerados e substituídos por versões convenientes ao regime totalitário. Esse processo, chamado eufemisticamente de “retificação”, revelaria o verdadeiro motor do autoritarismo: o controle do passado para moldar o futuro.

No Brasil de hoje, não há buracos pneumáticos nem ministérios da verdade, mas há uma realidade cada vez mais alarmante: Câmaras Municipais e parlamentares pressionando docentes, tentativas de cercear currículos escolares, invasões de universidades e uma cultura política que incentiva a autocensura.

Como em Orwell, busca-se criar um ambiente onde a memória coletiva é ameaçada, e o passado se torna alvo de manipulação ideológica.

O governo paulista, liderado por Tarcísio de Freitas (Republicanos), tem promovido uma série de ações que, embora apresentadas como parte de uma “modernização da educação”, escondem um projeto de desmonte e controle. O prefeito da capital, Ricardo Nunes (MDB), segue essa orientação.

A redução da carga horária dos conteúdos de história e sua crescente dissolução como disciplina específica, a substituição de professores por plataformas digitais e o avanço das escolas cívico-militares são medidas que fragilizam o papel formador da escola e de seus professores e tornam o ensino refém de interesses políticos autoritários.

Esse tipo de política ecoa práticas já observadas em estados norte-americanos como o Texas, onde diretrizes educacionais foram modificadas para minimizar ou suprimir o ensino de temas como escravidão, racismo e lutas sociais.

Trata-se de uma pedagogia do esquecimento, avessa ao pensamento crítico e hostil à pluralidade de interpretações sobre o passado. É preciso recordar que a ditadura militar, a partir de 1964, havia suprimido o ensino de história, retomado somente na década de 1980.

Ao atacar o ensino de história e o conjunto dessa área do conhecimento, retira-se do estudante e da sociedade em geral a possibilidade de compreender as raízes das desigualdades, das lutas sociais, das conquistas democráticas. Abala-se o vínculo entre memória e cidadania.

Vai-se além de outra abordagem negativa que vê a história como área supostamente dedicada à vulgarização de conhecimentos do passado e dedicada simplesmente à diversão e à curiosidade.

Aqui a história deixa de ser ferramenta de reflexão para se tornar campo de disputa ideológica, onde prevalecem o apagamento e a distorção.

Esse cenário é agravado por ações de grupos extremistas de direita que vêm promovendo invasões a instituições de ensino superior, como ocorreu recentemente nos cursos de história da USP e da Unicamp, e pela proliferação de iniciativas de desinformação histórica, como as difundidas entre outras pela plataforma Brasil Paralelo desde 2019 — objeto de denúncia da Associação Nacional de História (Anpuh) junto ao Ministério da Educação.

A Anpuh, entidade representativa dos interesses dos professores de história e historiadores do Brasil, tem denunciado publicamente essa escalada de perseguição aos profissionais da área, em especial no estado de São Paulo.

Professores estão sendo demitidos, monitorados ou censurados pelo conteúdo de suas aulas. Mais do que uma disputa por espaço no currículo, o que está em jogo é o papel da história na formação da consciência crítica e na consolidação de uma sociedade democrática.

A defesa da história vai além da sala de aula. Ela envolve a valorização da pesquisa, dos arquivos, dos museus, do patrimônio imaterial. É a defesa da memória coletiva de um povo.

Um país que nega sua história, que não conhece seu passado, se torna presa fácil do obscurantismo, do negacionismo, da manipulação e arrisca-se a perder sua soberania nacional.

É por isso que no próximo dia 20 de agosto, às 14h30, será realizada uma audiência pública na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) em defesa do ensino de história e da liberdade de cátedra.

Mais do que um ato simbólico, trata-se de um chamado à sociedade civil, aos educadores e às instituições democráticas: é hora de reagir.

Porque quem conhece o passado não aceita qualquer futuro.

Francivaldo Nunes é professor da Universidade Federal do Pará e presidente da Anpuh (Associação Nacional de História).

Marcos Leitão de Almeida é professor da USP e secretário-geral da Anpuh

Everaldo Andrade é professor da USP e presidente da Anpuh-SP.

Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Last Update: 12/08/2025