
Saídas do desejo autoritário: a produção simbólica compartilhada
por Eliseu Raphael Venturi
O desejo autoritário se alimenta do colapso simbólico. Onde a linguagem falha, o poder se impõe. Onde o laço se rarefaz, a norma endurece. Onde a escuta desaparece, o grito vence. Não por força própria, mas por vazio do comum.
O autoritarismo, mais do que imposição de vontade, é um sintoma coletivo da incapacidade de partilhar sentido. Quando o mundo já não fala a uma só língua, quando o Outro se esvazia e os significantes se dispersam, emerge a fantasia de um sentido unificado — e com ela, o desejo de um mestre que restabeleça o eixo da narrativa.
Mas não há eixo. Nunca houve. O simbólico não é eixo; é trama. É tecido precário, entrecortado, nunca completo. E a política, entendida em sua dimensão mais ética, não é a arte de governar os corpos, mas a arte de sustentar a linguagem onde ela tende a falhar.
Nesse ponto, a produção simbólica compartilhada torna-se uma resposta possível ao desejo autoritário — não no campo da força, mas no da escuta. Ela não combate o autoritário em sua lógica, mas a dissolve em sua raiz: a suposição de que o sentido é dado, e não feito.
Produzir simbolicamente com o outro é aceitar que nenhum de nós tem o todo. É recusar a soberania dos discursos totalizantes — seja da tradição, da técnica, da religião ou da ideologia — em favor de uma partilha aberta do incompleto.
O símbolo, em sua origem, era uma peça quebrada: duas metades que, ao se reencontrarem, formavam o sinal de um pertencimento possível. Produzir símbolos em comum é justamente isso: aceitar que só se reconhece algo do mundo quando se reconhece também o outro como parte implicada na construção.
A produção simbólica compartilhada exige tempo, conflito e linguagem. Exige uma renúncia à pressa da resposta pronta. Exige hesitação. Supõe que a verdade não seja um dado, mas um processo. Que o vínculo se faça não na identidade, mas na alteridade reconhecida como irredutível.
Ao contrário do desejo autoritário — que demanda submissão, pureza e coerência — a produção simbólica compartilha dúvidas, rasuras, tropeços. Não idealiza o consenso, mas valoriza o dissenso como matéria viva da linguagem.
O autoritarismo opera pela interrupção do símbolo: ele transforma palavras em comandos, sentidos em dogmas, nomes em selos de exclusão. Toda linguagem que se fecha em si mesma, todo discurso que se recusa a dialogar com o que o excede, todo código que não aceita ser reinterpretado, torna-se campo fértil para o desejo autoritário.
Por isso, resistir não é apenas dizer “não”. É dizer de outro modo. É abrir espaço para o que não foi ainda simbolizado. É permitir que o novo entre na língua — e com ele, novas formas de vínculo.
Esse gesto é profundamente político. Não no sentido institucional, mas existencial. Produzir símbolo com o outro é fazer política com a linguagem. É recusar-se a ser administrado pela máquina do gozo, pela repetição do já dito, pelo automatismo das narrativas prontas.
É, também, recusar o cinismo da não linguagem — aquele que declara que tudo é mentira, que nada vale, que todos os sentidos são manipuláveis. Porque mesmo nesse cinismo mora um desejo autoritário: o de calar o outro por saturação.
A saída, se há, não está no grito, mas na escuta que cria. Não está no retorno a uma linguagem pura, mas na coragem de criar um novo idioma para o mundo que já não cabe no velho. A produção simbólica compartilhada é uma aposta no inacabado. Ela não propõe harmonia, mas coabitação. Não oferece certeza, mas implicação. É uma política do encontro, não da dominação. Uma ética do inominável, que não teme o que ainda não tem nome, e por isso pode nomear.
Quando dois sujeitos conseguem sustentar um símbolo entre si — um gesto, uma palavra, uma imagem — que não seja apenas reflexo de si mesmos, mas ponte entre alteridades, algo da política renasce. Algo do comum se reinscreve. E o desejo autoritário, que queria tudo para si, perde força diante da possibilidade de habitar o mundo com o outro — e não contra ele.
Eliseu Raphael Venturi é doutor em direitos humanos e democracia e radicado em Curitiba/PR.
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