Redação Viomundo
A oficina “Desprivatização dos Sistemas de Saúde da América Latina” foi uma das atividades pré-congresso da Alames, que aconteceu no Rio de Janeiro.
Realizada nos dias 4 e 5 de agosto, ela foi organizada pelo Grupo de Pesquisa e Documentação sobre o Empresariamento da Saúde (GPDES/UFRJ) e o Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes).
Ao final da oficina, foi aprovada a declaração política ”Sistemas Universais de Saúde: desprivatização como necessidade e possibilidade histórica”
Segue a íntegra.
Sistemas Universais de Saúde: desprivatização como necessidade e possibilidade histórica
O conceito de Sistemas Universais de Saúde tem sido desenvolvido e aprimorado nas últimas décadas a partir do acúmulo teórico e político da Saúde Coletiva e da Medicina Social latino-americana.
Mais do que um contraponto aos modelos e diretrizes disseminados pelas políticas, reformas e modelos neoliberais, o conceito abarca fundamentos epistemológicos do pensamento crítico em saúde; ferramentas analíticas para produção de evidências, interpretação da realidade e comparação dos sistemas de saúde; e princípios ético-políticos capazes de orientar propostas alternativas e a ação coletiva pela defesa do direito universal à saúde.
Esta ideia-força vem inspirando processos históricos, resistências e lutas políticas concretas por reformas progressivas e universalistas na região. Todavia, ainda há uma grande distância entre a realidade de nossos sistemas de saúde e as aspirações democratizantes e socializantes que devem orientar a organização e construção de Sistemas Universais de Saúde.
Entre as múltiplas barreiras, políticas, econômicas e sociais que impedem avanços mais substantivos, destaca-se a tendência histórica e estrutural de privatização dos sistemas de saúde.
Isto é, a ampliação da participação, influência e atuação do setor privado em atividades, funções, componentes e instituições dos sistemas de saúde, desde o financiamento até a provisão de serviços, passando por sua organização institucional, gestão e contratação da força de trabalho em saúde.
Embora manifestações e consequências destes processos sejam heterogêneas e específicas em cada contexto nacional e local, a privatização tornou-se um poderoso vetor da estratificação do acesso e das coberturas, da fragmentação das redes de serviços e do cuidado em saúde, e da acumulação de capital.
Os resultados são o aumento das desigualdades em saúde; a subordinação dos interesses coletivos, das necessidades de saúde e dos modelos de atenção à lógica de mercado; a fragilização do setor público e das capacidades estatais; e a inviabilização de políticas de saúde universais, solidárias e redistributivas orientadas para a promoção da justiça social e da soberania sanitária.
Diante desse cenário, surge uma questão incontornável: é possível construir e organizar Sistemas Universais de Saúde sem desprivatizá-los?
Acreditamos que não. Diversas experiências históricas e contemporâneas, em escalas e abrangência variadas, mostram que privatização não é inevitável nem inexorável.
Ao contrário, sua reversão é uma necessidade e uma possibilidade histórica diante dos desafios sócio-sanitários e das múltiplas crises do presente.
Em linhas gerais e de forma preliminar, entendemos por desprivatização dos sistemas de saúde o processo de decrescimento do papel do componente privado nos sistemas de saúde e dentro de uma dinâmica público-privada em constante transformação. Isso passa necessariamente por um duplo movimento.
De um lado, o fortalecimento do Estado, a expansão do setor público e ampliação do controle popular em todas as dimensões dos sistemas de saúde.
De outro, a redefinição do escopo, das funções, das formas e dos limites setoriais de operação dos componentes e agentes privados.
Tal movimento deve subordinar ao interesse coletivo os recursos financeiros e assistenciais existentes revertendo sua apropriação privada, além de reduzir a influência das forças de mercado sobre as políticas de saúde.
Naturalmente, a desprivatização não deve ser vista como uma abstração, mas como movimento articulado e determinado por processos históricos, pela ação política e pela dinâmica dos conflitos sociais.
O reconhecimento de que a desprivatização é uma premissa indispensável para a construção de sistemas públicos e universais no século XXI traz à tona uma série de desafios teóricos, metodológicos e políticos.
Em primeiro lugar, faz-se necessário a renovação de conceitos e categorias baseadas no pensamento crítico em saúde que permitam definir a desprivatização, bem como analisar, comparar e avaliar experiências históricas e processos reais em marcha.
Em segundo lugar, tal movimento exige esforços que só podem ser bem-sucedidos se empreendidos de forma coletiva, a partir do diálogo entre centros de pesquisa, instituições públicas, organizações da sociedade civil e movimentos sociais da região.
Em terceiro lugar, a produção de conhecimento sobre a desprivatização não deve ser um fim em si mesmo, mas deve estar orientada para a formulação, viabilização e articulação de alternativas, instrumentos e proposições capazes de subsidiar e impulsionar a luta política pelo direito universal à saúde.
Nesse sentido, a Associação Latino-americana de Saúde Coletiva e Medicina Social (ALAMES) saúda a emergência deste debate em seu XVIII Congresso e conclama seus investigadores, militantes, capítulos nacionais e redes para somarem esforços na construção de agendas de pesquisa, na constituição de espaços de discussão e formulação coletiva, e na mobilização social pela desprivatização dos sistemas de saúde na América Latina.
Rio de Janeiro, 8 de Agosto de 2025
- Grupo de Pesquisa e Documentação sobre o Empresariamento da Saúde (GPDES/UFRJ)
- Grupo de Estudos sobre Planos de Saúde e Relações Público-Privadas (GEPS/USP)
- Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes)
- Grupo de Trabalho de Estudos Sociais em Saúde da CLACSO
- Movimento Pela Saúde dos Povos (MSP)
- Associação Latino-americana de Medicina Social e Saúde Coletiva (ALAMES)