
Rotas do vinho
por Walnice Nogueira Galvão
Viajando por Portugal, aproveite para transpor o rio Minho, que forma a fronteira com a Espanha, na altura da Galícia. A Galícia, apesar de espanhola, é tão boa de vinho verde quanto Portugal, só mudando ligeiramente a grafia da afamada casta Alvarinho, que lá se torna Albariño
E já que está nas paragens dê um pulinho até Santiago de Compostela, capital da Galícia, para contemplar sua imponente catedral românico-barroca, patrimônio mundial da Unesco. Da Monção portuguesa na fronteira até lá são cerca de 100 km de carro, trem ou ônibus. Monção fica à beira do rio Minho, é uma “vila” e tem 17 mil habitantes. Você passará na estrada por muitos peregrinos com sua concha de Saint-Jaques pendurada no cajado do andarilho.
Por que Saint-Jaques? Reza a lenda que foi São Tiago/Santiago quem fundou a igreja. Caso alguém se admire do intervalo de um milênio entre a vida do apóstolo Tiago (um dos 12 de Jesus Cristo) e a data da chegada à Espanha, deixa pra lá: os fiéis não se importam e passam a lenda adiante com cara de pau. Tampouco se abalam quando os filólogos insistem que a etimologia de Compostela é cemitério ou esterco, e continuam dizendo que é “Campo da Estrela”, muito mais bonito, convenhamos, que o outro…
Do lado português fica a vila de Monção, capital mundial do vinho verde. Em suas tascas oferecem-se vários com o topônimo, “Muralhas de Monção”, “Nuvens de Monção”, e assim por diante, servidos não em copo ou taça mas em malgas, que são tigelas rasas sem pé e sem alças. É assim que os nativos bebem – imite-os.
A vila fica no alto, nas barrancas do rio Minho. Do outro lado do rio já é a Espanha (Galicia), e olhando das muralhas dá para entender a história de uma heroína local, por nome Deu-La-Deu Martins. Corriam as Guerras Fernandinas, no séc. XIV, e os espanhóis assediavam Monção, que já estava nas últimas. Querendo enganar o inimigo e fingir que ainda havia fartura, conta-se que uma mulher assou uma quantidade enorme de pães com as poucas medidas de farinha que lhes restavam, e jogou os pães do alto da muralha para os espanhóis la em baixo. Estes, desacorçoados por aquela resistência inflexível baseada em abundância de víveres, bateram em retirada. O ardil resultou e a guerra terminou.
Nas armas da vila vê-se uma mulher no alto de uma torre, com um pão em cada mão. E a divisa da vila reza: “Deus o deu, Deus o ha dado” – cuja corruptela deve ter resultado no nome Deu-la-Deu, ou vice-versa.
Uma rota importante e que fica para outra ocasião, é a da Provença, pátria de vinhos clássicos. Mas é difícil competir com os encantos do povoado de Chateauneuf-du-Pape. Para começar, o lindo nome, de fundas raízes históricas, pois fica ali do lado a Avignon do papado cismático que vigorou na Idade Média com uma espécie de “papa paralelo”. Depois, o fato de nomear um vinho famoso. E finalmente, a tradição de fazer jorrar vinho Chateauneuf-du-Pape uma vez por ano, no aniversário da vila, do belo chafariz de mármore branco que fica em seu centro. É uma comuna minúscula, não passa de um arruado, de não mais que 2 mil habitantes, na Provença. Mas parece saída de um conto de fadas.
Já a casta Tokaji, nativa e exclusiva da Hungria, tem linhagem que remonta aos romanos, que, afora estradas e aquedutos, deixaram seu legado plentando vinhedos por toda a Europa. Ao que consta, era o vinho preferido de Luis XIV, o Rei Sol em sua Versalhes: dizem que vem dele a definição de que o Tokaji é “o vinho dos reis e o rei dos vinhos”.
Coisa rara, não é preciso ir às planícies do interior, as psuztas, célebres pela fertilidade, para prová-lo. Elas são tão célebres que até foram também alvo de tombamento pela Unesco. Ali mesmo no centro de Budapeste, pertinho da Ópera, encontra-se uma casa de degustação dos vinhos Tokaji. A casa oferece perto de 30 variedades da marca, indo desde o champanhe até o licor. Entre os fregueses, todos de pé pois não há mesas e cadeiras, notam-se donas de casa com sacolas de compras e pedreiros de obra em macacões respingados de cimento. Os vinhos são todos deliciosos, todos baratinhos. Esfregamos os olhos, mas continuamos acreditando que estamos no paraíso.
Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP