
Assim caminha a humanidade (II): A Índia e outros…, por Fausto Godoy
Reza o ditado popular que “quando Deus fecha uma porta, Ele abre duas”…Este ditado se aplica como uma luva, para mim, ao que está acontecendo com as nossas relações econômico-comerciais – e por que não, políticas – com os Estados Unidos.
Costumo me ater aos temas asiáticos, que são a minha “praia”, e não vou me alongar nas discussões acirradas que têm mobilizado a todos nós, senão me juntar àqueles que tentam refletir sobre saídas possíveis para o que está acontecendo… O tarifaço “imposto imperialmente”– este é o termo – pelo presidente Donald Trump, sem nenhuma possibilidade até agora de recurso, ou sequer de diálogo, é um desrespeito à nossa soberania e um atentado contra as nossas relações bilaterais bicentenárias, na grande maioria das vezes harmoniosas…
Para mim, diplomata aposentado, que serviu na nossa Embaixada em Washington, ler na página da Embaixada dos Estados Unidos em Brasília a mensagem de que ”o ministro Moraes é o principal arquiteto da censura e perseguição contra Bolsonaro e seus apoiadores”… e que “estamos monitorando a situação de perto”, é um policiamento e uma ingerência inomináveis nos nossos assuntos internos, e uma afronta que nem o país mais lacaio merece! Neste clima pantanoso, as discussões acirradas e nefastas que mobilizam – e dividem – a nossa sociedade, demonstram o quanto carecemos do sentimento de “Pátria” – sem “patrioteirismo” – e de amor pelo solo que nos deu a vida e abriga a nós e aos que nos precederam e que nos sucederão…
Mas não quero me ater a “choraminguices” e, sim, refletir sobre alternativas que este “fait accompli” nos impõe. Fruto da minha vivência de quase dezesseis anos em onze países da Ásia, sou testemunha do quanto as nossas elites, empresariais e institucionais, sobretudo, desconhecem a respeito das oportunidades que o acercamento dos países do Continente – além da China, nossa principal parceira comercial, obviamente – nos proporcionaria, e do quanto este desconhecimento nos impede de afrontarmos este desafio.
Foi assim que fiquei muito aliviado com a notícia que o Itamaraty publicou ontem, no seu site, a respeito do telefonema que o Presidente Lula manteve com o Primeiro-Ministro da Índia, Narendra Modi. Como sabemos, a Índia e o Brasil foram os países mais afetados pelas tarifas americanas , em torno de 50%, ambos por motivações políticas – no nosso caso o fator “Bolsonaro”, e no da Índia para interromper a compra de petróleo da Rússia, na alegada tentativa de D.T. de forçar Vladimir Putin a acabar com a guerra da Ucrânia. Segundo o comunicado, “ambos reafirmaram a importância em defender o multilateralismo e a necessidade de fazer frente aos desafios da conjuntura, além de explorar possibilidades de maior integração entre os dois países”… e “confirmaram a realização de visita de Estado do presidente Lula à Índia no início do próximo ano. Como etapa preparatória da visita, acordaram que o vice-presidente Geraldo Alckmin irá à Índia em outubro próximo… A delegação contará com ministros e empresários brasileiros para tratar de cooperação na área comercial, de defesa, energia, minerais críticos, saúde e inclusão digital”… e “recordaram, ainda, a meta de aumentar o comércio bilateral para mais de US$ 20 bilhões até 2030. Para isso, concordaram em ampliar a cobertura do acordo entre MERCOSUL e Índia. Trocaram informações sobre as plataformas de pagamento virtual dos dois países, incluindo o PIX e a UPI indiana”…
Até que enfim… e por que a Índia?…
Vamos aos fatos: com uma população de mais de 1,4 bilhão de habitantes, na sua maioria com idade inferior a 25 anos, a Índia tem apresentado um crescimento econômico robusto – com taxas anuais de cerca de 6,3% nos últimos anos -, impulsionado por investimentos e pelas multinacionais estabelecidas no país, o que poderá dobrar a renda média da população em uma década. O FMI assinala que se a Índia promovesse reformas de mercado mais fundamentais poderia sustentar taxas ainda mais altas. Este crescimento tem sido alimentado pela expansão do setor de serviços, sobretudo na área da tecnologia da informação, em que o país é referência mundial, e que vem crescendo consistentemente. Fruto disto, a Índia se destaca como um centro de inovação, com um número significativo de “startups” e unicórnios. Alguns especialistas afirmam até que ”este padrão de desenvolvimento poderá fazer com que o país seja capaz de saltar a etapa intermediária da industrialização na transformação da sua estrutura econômica. Prevê-se que até meados deste século a Índia se transfore na 3ª maior economia do planeta”… Na contra-leitura, este desempenho, ainda que favorável, não tem sido suficiente para a melhoria significativa dos indicadores de desenvolvimento humano, mesmo que a taxa de pobreza tenha diminuído nestes últimos anos”. Fica o desafio…
Segundo o Itamaraty, “a Índia tem se consolidado como um dos principais destinos para as exportações brasileiras. Entre 2003 e 2023, o país asiático avançou de 26º para 13º maior destino das exportações do Brasil, refletindo um crescimento médio anual de 14,3% superior ao das exportações brasileiras para o mundo, de 11,3% no mesmo período. Em 2023, as exportações brasileiras para a Índia chegaram a US$ 4,7 bilhões… Existe, no entanto, o desafio de diversificar a pauta brasileira, já que três produtos correspondem a 66,8% das exportações”.
O mesmo acontece com os países árabes: segundo matéria do Estadão de hoje, intitulada “A Liga Árabe quer comprar mais do agro brasileiro”: ”…levantamento da Câmara de Comércio Árabe-Brasileira aponta que itens como carne e café poderiam ser redirecionados à região”. A matéria assinala ainda que “os 22 países da Liga Árabe são potenciais substitutos dos produtos brasileiros que foram submetidos às tarifas americanas”. A propósito, não nos esqueçamos de que o Brasil já é o principal exportador de carne “halal” (de abate ritual) aos países muçulmanos…
Estes são apenas dois exemplos das oportunidades que se descortinam…E a África?… E o sudeste asiático, que está crescendo em níveis exponenciais?… E os mercados não prospectados na nossa própria vizinhança? ..É justamente aí que está o “X da questão”: não se justifica a timidez dos nossos empresários e agentes públicos diante da dimensão do problema e das oportunidades que se descortinam no processo de globalização das economias, sobretudo em momento tão desafiador. O mundo está mudando de paradigma e dizendo adeus às certezas vassalas do século XX… Ao invés de ficarmos batendo na mesma tecla – agora avariada – do nosso intercâmbio com os Estados Unidos, solução, a meu ver, de facilidade resultante de um universo sobejamente conhecido – Miami e a Disney que o digam… – por que não aproveitarmos a “janela de oportunidade” que se abre neste momento em que vários países se encontram no mesmo barco?…Fácil falar…dificil de se concretizar, eu sei… chegamos tarde…também sei; mas não tem jeito: sucumbir…ou ousar?….Tem saída?…
To be continued…
Fausto Godoy, Serviu nas Embaixadas do Brasil em Bruxelas (1978); Buenos Aires, (1980); Nova Delhi (1984); Washington (1992) e Tóquio (2001). Foi designado Embaixador junto aos governos do Paquistão (2004) e Afeganistão (2005). Serviu posteriormente em Hanoi (2007); Consulado do Brasil em Tóquio; Escritório Comercial do Brasil em Taipé; e nas Embaixadas do Brasil em Bagdá (sediada em Amã), Daca, Astana e Yangon. Foi Cônsul-Geral do Brasil em Mumbai (2009). Aposentou-se do Serviço Exterior Brasileiro em 2015. Doou sua coleção de arte e etnologia asiáticas (com cerca de 3.000 peças), ao Museu Oscar Niemeyer, de Curitiba. Esta coleção constitui a primeira ala asiática em um museu brasileiro. É membro da Diretoria da Câmara de Comércio Brasil-Índia. É coordenador do Núcleo de Estudos e Negócios Asiáticos na ESPM
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