
Os riscos do Projeto de Lei que pretende instituir a Consolidação das Leis Brasileiras de Inclusão da Pessoa com Deficiência
por Ana Cláudia Mendes de Figueiredo
Em 9 de abril de 2025, a Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência apresentou o Projeto de Lei (PL) nº 1.584, que instituía a Consolidação das Leis Brasileiras de Inclusão da Pessoa com Deficiência. Esse PL foi arquivado pouco tempo depois, em decorrência da reação negativa do movimento de pessoas com deficiência.
Com a mesma intenção de consolidar leis que tratam da temática da deficiência, a citada Comissão, presidida pelo Deputado Duarte Jr., apresentou, em 29 de maio de 2025, em substituição ao PL nº 1.584/2025, o Projeto de Lei nº 2.661.
Embora alguns problemas apontados no PL original tenham sido corrigidos nesse último PL, subsistem ainda equívocos e potenciais riscos de fragilização dos direitos humanos e fundamentais da população com deficiência.
O Projeto atualmente aguarda parecer do relator, Deputado Duarte Jr., no Grupo de Trabalho para Consolidação da Legislação Brasileira da Câmara dos Deputados. O prazo para o recebimento de sugestões ao texto, iniciado em 11.6.2025, foi encerrado no último dia 14.
O principal objetivo da consolidação, mencionado na justificação do PL, é tornar “acessíveis, claros e eficazes” os direitos previstos em “normas dispersas que dificultam o conhecimento e a exigibilidade desses direitos por parte dos cidadãos”.
Não obstante o propósito pareça nobre, há várias razões que nos levam à compreensão de que o PL nº 2.661/2025 deve ser arquivado, cabendo referir neste artigo as mais evidentes.
O risco de redução ou fragilização dos direitos previstos na LBI e nas demais leis consolidadas
O PL nº 2.661/2025 reúne, na Lei nº 13.146/2015, Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI), quinze leis que tratam especificamente da temática da deficiência e faz remissões a dezenas de outras.
A LBI é uma legislação robusta que tem como base a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), promulgada pelo Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, e como um dos objetivos conferir efetividade a esse ato internacional no plano interno.
Para tanto, a LBI estabeleceu novas regras e alterou outras existentes, criando um microssistema que constitui um marco jurídico consolidado, reconhecido nacional e internacionalmente.
O PL nº 2.661/2025, ao sujeitar essa legislação a nova tramitação no Congresso, coloca em risco esse marco normativo estruturante no âmbito dos direitos das pessoas com deficiência em nosso país.
Embora a lei que disciplina os projetos de consolidação, a Lei Complementar (LCp) nº 95/1998, determine a preservação do conteúdo original dos dispositivos incluídos nesses projetos, essa Lei permite alterações para, por exemplo, atualizar termos ultrapassados, eliminar ambiguidades e reunir normas repetitivas, o que pode desencadear mudanças de sentido.
Tais mudanças podem ocorrer também em face de emendas apresentadas em desatenção ao disposto na LCp nº 95/1998 e nos Regimentos Internos da Câmara e do Senado, bem como em face de pressões de setores da sociedade descontentes com as normas atuais.
A Nota Técnica juntada ao PL nº 2.661/2025 confirma a compreensão no sentido de existência de riscos na tramitação do Projeto ao afirmar que, sob o viés político, “trata-se de um procedimento menos ‘arriscado’, pelas salvaguardas já explanadas, que qualquer outro projeto de lei de tramitação ordinária na Câmara dos Deputados”.
A Lei nº 13.146/2015 tornou-se um símbolo e um legado do movimento de pessoas com deficiência. Essa Lei, juntamente com as leis consolidadas, compõem o patrimônio histórico, político e jurídico dessa população. Pelo valor que encerra, o citado patrimônio deve ser protegido de toda e qualquer ameaça de restrição ou fragilização dos dispositivos respectivos.
A insegurança jurídica que a futura Consolidação pode gerar
A publicação da Consolidação das Leis Brasileiras de Inclusão da Pessoa com Deficiência, após a aprovação do Projeto de Lei nº 2.661/2025, pode desencadear insegurança jurídica por pelo menos duas razões.
Primeiramente em face da possibilidade de interpretações jurídicas mais restritivas dos dispositivos da nova lei, considerados os direitos consagrados atualmente. Essas interpretações podem acontecer tanto em relação àqueles artigos reescritos, consoante autorizado pela LCp nº 95/98, quanto àqueles dispositivos alterados por força de emendas aprovadas.
As interpretações restritivas são suscetíveis de ocorrer, ainda, em face da realocação de determinados dispositivos, o que pode gerar debates baseados na nova localização da norma.
Por fim, a insegurança jurídica pode ser desencadeada pela ausência de previsão expressa, no texto do PL nº 2.661/2025, sobre a subsistência dos decretos regulamentares editados, como é o caso do Decreto nº 5.296/2004, que regulamentou as Leis nºs 10.048/2000 e 10.098/2000. Sendo revogadas leis já regulamentadas, são bem prováveis debates sobre eventuais vácuos normativos.
As situações mencionadas podem comprometer o exercício de direitos por parte das pessoas com deficiência, assim como fragilizar o microssistema de proteção dos direitos desse público.
A imprescindibilidade da participação social e política das pessoas com deficiência
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência determina que os Estados Partes, na elaboração de legislação acerca de tais direitos, realizem consultas estreitas e envolvam ativamente essas pessoas.
A participação efetiva dessa população no processo legislativo sobre seus direitos, demanda, antes de tudo, um prazo ampliado, que é incompatível com o procedimento simplificado e célere próprio dos processos de consolidação (LCp nº 95/98).
Apesar de o Presidente da Comissão autora do PL nº 2.661/2025 ter afirmado, na justificação do Projeto, seu “compromisso com uma construção coletiva e participativa”, a partir de um processo democrático, “aberto à ampla colaboração da sociedade civil”, o curto prazo de tramitação dos projetos de consolidação e a existência de barreiras tecnológicas, comunicacionais e informacionais, enfrentadas cotidianamente pelas pessoas com deficiência, não propicia a participação prometida.
De outro lado, o movimento de pessoas com deficiência têm compreendido que sua participação, nas poucas ocasiões em que foi viabilizada, não tem sido considerada pelas/os integrantes da Comissão. A manutenção da tramitação da proposta de consolidação, apesar das manifestações contrárias em sua maioria, confirma a não consideração do posicionamento do movimento.
As citadas manifestações, no sentido de denúncia de riscos para as conquistas históricas do movimento e apelo por seu arquivamento, vem sendo concretizadas tanto em lives e em audiências públicas, quanto na publicação de notas de contrariedade à proposta, como por exemplo a divulgada pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitos dos Idosos e Pessoas com Deficiência (Ampid); pelo Comitê Deficiência e Acessibilidade da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) associado a outros coletivos; e pela Rede Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Rede-In).
O contexto relatado demonstra a ausência da participação política das pessoas com deficiência, que materializa o lema “Nada sobre nós sem nós”. Sem essa participação, não se pode considerar legítima e constitucional a proposta legislativa em debate.
A possibilidade de retrocessos em relação aos direitos consagrados na CDPD
Por fim, há ainda o risco de a futura lei implicar retrocessos em relação aos direitos e garantias previstos na Convenção, uma vez que pode consolidar dispositivos de leis editadas anteriormente à incorporação desse ato internacional e à própria LBI. Tal ocorre, por exemplo, na inclusão de dispositivos da Lei nº 7.853/1989, que prevê a “inserção, no […] sistema educacional, das escolas especiais, privadas e públicas” (artigo 2º, parágrafo único, inciso I, alínea ‘b’). Tal previsão não poderia ter sido incluída de modo algum na proposta, uma vez que o Estado brasileiro tem como dever constitucional assegurar “sistema educacional inclusivo em todos os níveis”, sem discriminação (CDPD, artigo 24). A mera inclusão daquele dispositivo da Lei nº 7.853/89 no PL abre espaço para debate sobre práticas que segregam estudantes com deficiência em ambientes paralelos e que, pelo menos em termos legislativos, já são consideradas ultrapassadas.
Não sendo objetivo deste artigo analisar os dispositivos do PL nº 2.661/2025, vale um alerta sobre os retrocessos que esse Projeto pode acarretar aos direitos previstos na CDPD, resultantes das lutas empreendidas pelas pessoas com deficiência nas últimas décadas.
O arquivamento como único caminho
Os argumentos referidos neste texto demonstram que o PL nº 2.661/2025 encerra graves e inaceitáveis riscos de retrocesso, relativamente aos direitos arduamente conquistados pelo movimento de pessoas com deficiência. Em face de tais riscos, a LBI e as leis consolidadas devem ser preservadas com rigor, fortalecidas com determinação e efetivadas com coragem, na forma como se encontram hoje.
As atividades de agrupamento das leis sobre a temática, realizadas pelo Grupo de Trabalho para Consolidação da Legislação Brasileira, poderiam ser destinadas à produção de um documento com as normas reunidas, o que geraria o mesmo objetivo referido no PL, sem ameaçar os direitos constantes dessas normas em nova tramitação legislativa.
Ao arquivar o Projeto de Lei em foco, em atenção à vontade e às preferências da maioria do movimento social e político de pessoas com deficiência, a Câmara dos Deputados restabelecerá o compromisso com a promoção, proteção e defesa dos direitos dessa população, atuando em consonância com os preceitos jurídicos estabelecidos nacional e internacionalmente e assegurando, por conseguinte, a observância da Convenção em relação à qual o Estado brasileiro se comprometeu.
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