Lançado em 1992, Drácula de Bram Stoker, dirigido por Francis Ford Coppola, é talvez a versão mais operística, sensual e visualmente sofisticada da lenda do vampiro. Não se trata apenas de uma adaptação fiel ao livro — embora siga de perto a estrutura da obra de 1897 —, mas de uma reinvenção gótica que funde amor e horror, tradição e delírio, misticismo e decadência. É também, paradoxalmente, um filme mais sobre os ingleses do que sobre os romenos.

Ao retratar Vlad Drácula como um homem apaixonado, amaldiçoado e em busca de redenção, Coppola devolve subjetividade a uma figura que, na literatura britânica, havia sido reduzida a um invasor bárbaro. Ao mesmo tempo, seu filme se ancora nas referências do cinema expressionista alemão e na herança barroca da ópera, misturando sexualidade e morte em cenas densas, plásticas e hipnóticas. Gary Oldman, como o conde, é grotesco e erótico, ancestral e moderno.

Mas por trás do romance e das sombras, o filme revela algo mais incômodo: o medo colonial britânico diante do Leste Europeu, o fascínio decadente com o exótico e a insistência em pintar reis e rainhas como monstros quando são estrangeiros — enquanto Henrique VIII vira protagonista de série romântica da BBC.

Amor, sangue e condenação eterna (com spoilers)

No filme de Coppola, Drácula não surge apenas como predador, mas como homem ferido. Após vencer uma guerra em nome da Igreja, Vlad volta à sua terra e encontra sua amada Elisabeta morta — enganada por uma falsa notícia de sua morte em batalha. Revoltado com Deus e com a Igreja, ele renega a fé e se transforma naquilo que chamariam de monstro: um vampiro imortal.

Séculos depois, já em Londres, ele acredita reencontrar sua amada reencarnada na figura de Mina (Winona Ryder), noiva de Jonathan Harker (Keanu Reeves). Começa então um jogo de sedução e possessão em que o amor e a maldição caminham juntos. Drácula quer reaver sua alma — ou destruí-la junto com a do mundo que o condenou.

Mina se divide entre o dever e o desejo, entre o amor civilizado e o amor condenado. No fim, ela mesma é quem encerra o ciclo: mata Drácula com ternura, permitindo que ele finalmente morra em paz — e que ela mesma sobreviva, mas marcada para sempre.

O filme termina, assim, como uma tragédia romântica mais do que como um terror tradicional. O sangue escorre, sim, mas carrega também lágrimas. A condenação é mútua: entre Deus e o homem, entre o amor e a história, entre o Ocidente e aquilo que ele não entende.

Expressionismo e a dança das sombras

O expressionismo alemão do cinema dos anos 1920 está em todo lugar no Drácula de Coppola. Desde os planos inclinados e cenários deformados, até o uso agressivo de sombras e luzes que não obedecem à lógica naturalista, mas à lógica do pesadelo. O filme evoca diretamente Nosferatu (1922), de Murnau, especialmente nas silhuetas projetadas na parede e na relação entre o monstro e o ambiente que o cerca — um castelo que parece vivo, um mundo que se dobra à dor do conde.

Mas Coppola vai além do pastiche. Ele filma Drácula como uma ópera expressionista. A câmera se move como se estivesse em um palco. O tempo é distorcido. A montagem é marcada por sobreposições de imagens, espelhamentos, texturas que evocam o cinema mudo. Os efeitos são artesanais — feitos no set, e não no computador — como se o diretor quisesse nos lembrar que o horror precisa ser tátil.

A estética não é apenas decoração. Ela expressa o conflito interno de Drácula: um homem que renunciou a Deus, mas não ao amor. Um monstro que se recusa a morrer porque se recusa a esquecer. O expressionismo, ao distorcer a realidade, revela a verdade oculta: o vampiro é a própria Inglaterra projetando seus pecados no outro.

O Leste, a bruxa, o bárbaro: vampiros e colonizadores

Na obra de Stoker — e também no filme —, há uma tensão constante entre civilização e selvageria, ciência e superstição, Londres e os Cárpatos. Mas enquanto o livro serve ao projeto colonial britânico, pintando Drácula como a ameaça externa que precisa ser exorcizada, o filme de Coppola desloca a lente e convida à empatia. Drácula não é apenas um vilão: é o resultado de uma Europa que não sabe o que fazer com sua própria violência.

Essa exotização do Leste Europeu não é nova. O Ocidente sempre oscilou entre o fascínio e o desprezo por figuras como Vlad Tepes (o empalador) e Erzsébet Báthory (a condessa que, supostamente, se banhava em sangue). Ambos são transformados em símbolos de barbárie, enquanto suas contrapartes inglesas, como Henrique VIII — que matou esposas à luz do dia —, são tratados com humanidade, política e paixão nas telas. The Tudors transforma o tirano em protagonista de um drama de poder e amor. Já Drácula só pode amar se for maldito.

Coppola não recusa esse imaginário, mas o reinventa. Sua Transilvânia é bela, trágica, pagã e sensual. Seus ingleses, por contraste, são mecânicos, frios, repressivos. Mina (Winona Ryder) se apaixona não apenas por Drácula, mas por tudo o que ele representa: o que ela perdeu, o que ela deseja, o que a sociedade vitoriana nega.

O filme, então, vira crítica: quem é o verdadeiro monstro? O bárbaro que ama demais ou a sociedade que exige que ele desapareça?

Vale a pena assistir ao Drácula de Coppola hoje?

Sem dúvida. Drácula de Bram Stoker é mais do que uma adaptação de luxo: é uma aula de cinema. Sua construção estética é rica, teatral e profundamente autoral. É uma rara junção de forma e conteúdo em que o horror é visual, simbólico e filosófico. É, também, um filme sobre perda e desejo, sobre o corpo e o tempo, sobre o amor que desafia até Deus — e por isso mesmo se torna maldição.

Mas é preciso ir além da estética e ouvir o que o filme sussurra: que o medo do outro é uma construção, e que nem todo monstro nasce para matar. Alguns, como Drácula, apenas se recusam a morrer em silêncio.

Ver o filme hoje é entender que o gótico não é só um gênero — é um espelho torto da história. E nesse espelho, às vezes, o reflexo que mais assusta… é o nosso.

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Last Update: 08/08/2025