Alguns apontamentos

As tensões no Oriente Médio talvez nunca tenham estado tão altas desde a Segunda Guerra Mundial. Apesar das décadas de conflitos e invasões que marcaram a região em todo o período da Guerra Fria e após a queda do Muro de Berlim, pela primeira vez temos um confronto direto entre uma das potências regionais – o Irã – e a base colonial e militar permanente das potências ocidentais na região, Israel. Comparável talvez apenas à guerra entre Israel e Egito em 1967, desta vez temos porém um conflito que arrisca diretamente o comércio internacional de todo o planeta, a produção de petróleo e gás natural que move boa parte dos países industrializados e a ameaça de envolvimento direto dos EUA na contenda. Considerando os interesses russos, chineses e paquistaneses em evitar o colapso do Estado iraniano, vemos um conflito que, como na Segunda Guerra, ameaça rapidamente se tornar mundializado, e mesmo nuclear, já que Israel possui um poderoso (e clandestino) arsenal atômico.

É inevitável portanto tentar pensar nas causas mais profundas desse conflito. Pode parecer a princípio que a estratégia genocida do Estado de Israel na região vá contra a racionalidade capitalista clássica. Do mesmo modo, a adesão incondicional estadunidense (sob diferentes governos) aos projetos israelitas pode parecer contraproducente para essa potência, ainda mais no presente momento, em que sua hegemonia global se vê ameaçada pela ascensão chinesa, e sua estabilidade política e social interna está em xeque. Sem atribuir ao sistema capitalista em decadência uma racionalidade que ele não possui, vamos considerar aqui algumas motivações econômicas e geopolíticas para esse conflito, sobretudo no que se refere ao envolvimento estadunidense nele, partindo do que Ernest Mandel chamou de “peculiar […] combinação suicida de racionalidade local ‘perfeita’ e de irracionalidade global extrema” do atual regime socioeconômico mundial. Ou seja, partimos do pressuposto de que as grandes potências da era imperialista, ao mesmo tempo em que impulsionam o regime capitalista global para conflitos cada vez mais destrutivos, com potencial de destruir a civilização burguesa, seu sistema internacional de Estados e a própria humanidade, trabalham também com uma racionalidade imediata que parte dos autointeresses de suas classes dominantes, racionalidade essa que se sobrepõe à aparente irracionalidade que se possa atribuir às características mentais e psicológicas de seus dirigentes. Em outras palavras, tentaremos encontrar os interesses da classe dominante estadunidense e israelita para além da loucura assassina de Netanyahu ou da arrogância tola de Trump. Estados não se reduzem às figuras públicas que os representam, nem às equipes que ocupam seus principais cargos em certos momentos.

Em outras palavras, tentaremos encontrar os interesses da classe dominante estadunidense e israelita para além da loucura assassina de Netanyahu ou da arrogância tola de Trump. Estados não se reduzem às figuras públicas que os representam, nem às equipes que ocupam seus principais cargos em certos momentos.

Gás natural e economia mundial

Até os anos 2010 o tema da importância do gás natural para a economia dos países industrializados era pouco mencionado nos debates de esquerda – e o petróleo, suas fontes e os conflitos derivados da luta por seu controle eram o principal tema discutido. Porém, após o início do conflito entre Rússia e Ucrânia, a importância do gás natural para a economia mundial veio subitamente à tona na mídia.

A transição do eixo energético global, porém, é um pouco anterior. Segundo dados da BP Statistical Review of World Energy, se em 1973 o petróleo respondia por 46% das necessidades energéticas globais e o gás natural por apenas 16%, em 2020 o petróleo tinha passado a responder por apenas 31% destas, com o gás natural fornecendo agora cerca de 25% da energia global. Houve um boom do setor de gás a partir dos anos 1990, respondendo em parte às crises do petróleo de 1973, 1979 e 1990-1991, com o estabelecimento de uma vasta infraestrutura de gasodutos. Novas tecnologias de extração a partir dos anos 2000 também ajudaram a ampliar a oferta de gás natural, o que derrubou seus preços, tornando-o mais interessante para a indústria. Também relevante para esta mudança de base energética foi a crescente preocupação com emissões de carbono, já que o gás natural emite cerca de 50% a menos de CO2 após sua queima do que o petróleo e derivados.

Atualmente, desconsiderando o setor de transporte (onde o petróleo ainda predomina), o gás natural responde por 32% das necessidades industriais dos EUA, 26% das da Alemanha e 24% das do Japão (ver gráfico abaixo).

Vale ressaltar que apesar do peso considerável que o carvão mineral ainda tem para países como China, Japão e Alemanha, as reservas mundiais de carvão enfrentam uma série de limitações. Além de muito poluente, o carvão mineral enfrenta um aumento considerável em seu preço (praticamente dobrando de 2006 até hoje), já que os tipos de carvão de maior potencial energético encontram-se consideravelmente reduzidos globalmente. Com a redução das reservas minerais (no caso de China e Alemanha, previstas para durarem entre 34 anos e 45 anos, respectivamente) o custo de extração do carvão de profundidade aumenta significativamente, agravando o problema. A tendência é, grosso modo, sua substituição pelo gás natural.

Assim, o setor assumiu uma importância estratégica na economia global. Além de questões como preço e adaptabilidade dessa fonte energética, o custo e o tempo para criar novas usinas movidas a gás é muito menor do que, por exemplo, para a criação de usinas nucleares de produção comparável, isso sem mencionar o acesso complicado ao urânio (cujas jazidas globais são concentradas em poucos países) e sua complexa cadeia de processamento. Nesse sentido, um relatório da JP Morgan prevê que a crescente demanda de eletricidade para mover as ferramentas de Inteligência Artificial será atendida em grande parte pela produção de energia através de gás natural, calculando em 60% o percentual. Assim, para além da já grande demanda, a previsão é de que esse recurso se torne mais crucial ainda para o crescimento econômico no futuro próximo.

Vejamos a distribuição atual da produção e das reservas de gás natural no mundo:

15 maiores produtores de gás natural do planeta + reservas estimadas (dados de 2023 de World Population Review)

Como podemos ver, Estados Unidos, Rússia e Irã lideram na produção global de gás natural. O interesse estadunidense em fornecer gás natural para uma Europa privada do fornecimento russo pelo conflito na Ucrânia não deve, portanto, nos surpreender. O mercado alemão, que consome 88,7 bilhões de metros cúbicos de gás natural por ano é um prêmio bilionário para quem puder atendê-lo. Porém, com um alto consumo de gás natural (que, como dissemos acima, deve crescer nos próximos anos), os cerca de 150 bilhões de metros cúbicos excedentes que os EUA extraem de gás natural não são o bastante para garantir seu futuro. Além disso, o fornecimento para a Europa tem na grande distância entre Estados Unidos e o velho continente um agravante – o transporte de gás natural liquefeito é mais complexo e caro do que o envio por gasodutos, que não são viáveis através de grandes oceanos. Assim, o fornecimento de gás natural para a Europa se torna crucial – se possível, através de gasodutos próximos à Europa.

Descobertas recentes de petróleo na região do Mediterrâneo prometem atender, ao menos parcialmente, às demandas europeias por gás natural. Tais reservas se encontram nas águas ao redor do Estado de Israel. Antes um pequeno produtor de gás natural, que atendia basicamente às demandas energéticas do Egito, novos campos de gás descobertos na costa israelita aumentaram a produção do país em 58%. Controladas sobretudo por empresas dos EUA, essas novas reservas enfrentam alguns problemas – a instabilidade social gerada pela ocupação ilegal das terras palestinas e a ameaça de outros fornecedores regionais com capacidade de atender essa demanda.

De fato, traçado em 2011, o projeto de um gasoduto indo de Fars, no Golfo Pérsico, até a Síria (e potencialmente o Líbano) abriria o mercado europeu para o gás natural do Irã que, como vimos na tabela anterior, é o terceiro maior produtor de gás natural do mundo, e o detentor da segunda maior reserva do planeta. A guerra civil na Síria, da qual Estados Unidos, Síria, Rússia e Israel participaram (indiretamente, mas em peso), assume assim a característica de um conflito também pelo mercado europeu de gás natural. Do mesmo modo, o incremento da violência genocida de Israel contra o povo palestino e, agora, a onda de ataques brutais contra o Estado iraniano, podem ser compreendidos em uma perspectiva econômica, na qual tirar de jogo um poderoso competidor permite a ampliação de lucros e a garantia de um quase monopólio na comercialização do gás.

Vale lembrar que Rússia, Irã e Venezuela, adversários estratégicos dos Estados Unidos, controlam juntos 45% das reservas globais de gás natural. Apesar de ainda ser um grande produtor, os EUA têm apenas 4,7% das reservas globais, e encaram, portanto, uma tendência de declínio em sua produção no futuro próximo. Assim, assegurar (através do genocídio do povo palestino) o controle de Israel das reservas recém-descobertas, negar o acesso do gás iraniano ao Mediterrâneo e à Europa e, se possível, enfraquecer ou derrubar o regime dos aiatolás, substituindo-o por um governo pró-americano, se tornam todos objetivos “racionais” do capitalismo estadunidense, que no presente momento, já decadente, se prepara para reafirmar sua hegemonia sobre o mundo em uma corrida desesperada pelos recursos naturais que serão necessários para a continuidade da revolução tecnológica atual (ditada por microchips cada vez mais complexos, materiais supercondutores para computação e pela demanda crescente de energia dos bancos de dados das inteligências artificiais).

A retomada do interesse do imperialismo americano (e a escalada em agressividade de seus subordinados em Israel) responde assim a uma demanda econômica do bloco ocidental. Longe de propor que o atual conflito tem sua origem apenas na questão econômica, queremos apenas ressaltar com estas breves anotações que a lógica devoradora do capitalismo global se encontra, sim, por trás da escalada no Oriente Médio. O imperialismo americano – com sua capa democrata ou republicana – não poderia se furtar a isso, salvo se desistisse de sua hegemonia global, o que nenhuma potência imperial jamais fez. Apoiar o povo palestino e iraniano neste momento em sua luta contra Israel e os EUA é, portanto, golpear diretamente os interesses do Império, e atacar em sua essência os mecanismos da acumulação capitalista. E para aprofundar nossa compreensão e capacidade de resposta enquanto socialistas às guerras que hoje devastam o Oriente Médio, devemos (sem desconsiderar aspectos ideológicos e religiosos) esmiuçar com mais detalhe as mudanças tecnológicas, industriais, e econômicas em jogo na região nas últimas duas décadas. Não se trata de curiosidade escolástica, e sim da vontade, que é a mesma de Lênin e de Marx, de entender para transformar. Como disse Mandel em “O Sentido da Segunda Guerra Mundial”,

Não há contradição entre a indignação moral e o compromisso político, por um lado, e a objetividade estritamente científica na investigação e na formulação dos seus resultados, por outro. Pelo contrário: quanto mais precisa e cientificamente o fascismo for analisado, exaustivamente explicado e reconhecido, mais eficazmente poderá ser combatido.

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Last Update: 07/08/2025