Por Jordan Michel-Muniz*, especial para o Viomundo
Em Florianópolis a praia pública está virando privada.
Ou melhor, privadas, milhares delas dando descarga para o oceano – um mar de esgoto.
O turismo, central na economia da ilha, depende da natureza preservada, das belas praias com águas cristalinas.
Isto existe no sul da ilha, beleza ‘descoberta’ pela especulação imobiliária, que destrói e expulsa antigos moradores, como no ‘descobrimento’ do Brasil, quando Portugal invadiu, roubou e exterminou povos indígenas.
Na invasão que ocorre em Floripa, em praias como o Campeche, em vez das caravelas portuguesas há carros‑fortes: grupos econômicos com muito dinheiro comprando tudo.
Isto expulsa pessoas de baixa renda e elitiza bairros, num processo globalizado de destruição cultural e ambiental que segrega pobres e amplia a desigualdade social, chamado de gentrificação.
Um ponto-chave na gentrificação é que apesar do vultoso dinheiro investido o principal não é pago, mas tomado por despossessão, como as belezas naturais e o meio ambiente saudável, bem conservados graças à comunidade invadida.
Há apropriação indébita, injusta, um crime contra a sociedade, como explico a seguir.
As construtoras acumularam terrenos enquanto financiavam campanhas eleitorais, numa barganha barata para aumentar a altura das construções.
Em afronta ao Estatuto da Cidade – lei federal que manda ouvir a comunidade – prefeitura e vereadores mutilaram o Plano Diretor antes redigido coletivamente.
Depois, com um decreto o prefeito Topázio Neto permitiu a verticalização no sul da ilha, sem se preocupar com saneamento básico, abastecimento de água, saúde pública, sistema viário, moradias sociais, meio ambiente, educação…
Alegam que o esgoto será ‘tratado’ nos prédios de 8 a 12 andares que estão erguendo. Logo multiplicarão tal altura, como nas torres que roubam o sol de Balneário Camboriú. Sabem que não é a solução correta, pelas deficiências e riscos, agravados por ser o ‘tratamento do esgoto’ delegado às construtoras – raposas cuidando do galinheiro!
A voracidade das raposas matará a galinha dos ovos de ouro, o turismo: venderão prédios enormes com base na beleza e tranquilidade atuais, que destruirão com tais projetos.
A comunidade rejeita a devastação, não quer construtoras devorando quem aqui mora, ainda que prometam cuidar dos poleiros sujos – do esgoto das milhares de privadas dos altos edifícios.
Ignoram a Constituição Federal (artigo 200, IV), pois ao “Sistema Único de Saúde [SUS] compete participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico”.
Esgoto é assunto de saúde pública.
Que sucessivos governos se omitam e populações pobres sofram com esgoto a céu aberto entre moradias miseráveis é vergonha nacional e violência do Estado contra desfavorecidos. Gente “vivendo na merda”, como diz Mike Davis em Planeta Favela.
“Quase metade da população brasileira ainda não tem acesso à rede de esgoto”, mostrou a Piauí, acrescentando que 1,1 bilhão de metros cúbicos de esgoto coletado foram jogados na natureza sem qualquer tratamento em 2021.
Em Floripa os excrementos ‘tratados’ serão lançados na rede pluvial – e daí para o mar – por ricos castelos de concreto e vidro, com preço de metro quadrado construído entre os mais caros do Brasil. Não falta dinheiro, falta decência aos políticos e construtoras.
Se mais água for tirada da Lagoa do Peri para suprir milhares de novos apartamentos, haverá salinização pelo rebaixamento do nível dela, e contaminação pelos excrementos lançados ao mar.
Tudo isto significa transmissão de doenças e desnecessária sobrecarga para o SUS.
Demandas sociais de caráter popular, relativas à saúde coletiva e ao meio ambiente, têm o direito de limitar a especulação imobiliária: “A política de desenvolvimento urbano […] tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes” (Constituição Federal, artigo 182).
A população exige ser ouvida na defesa do bem comum.
Afinal, o bem comum é a razão da teoria liberal para defender a propriedade privada e o livre mercado, diz o geógrafo David Harvey em Cidades rebeldes, e completa: se a propriedade é fruto do trabalho, então a cidade é de todos que nela vivem e a constroem.
O bem comum inclui os comuns: ar, água, paisagem, praias…, “todas as dádivas da natureza”, “herança da humanidade como um todo”, salientam Michael Hardt e Antonio Negri, o que obriga a pensar também nas gerações futuras, que não conheceremos.
Comuns são riqueza pública, não privada, nem sumidouro de privadas.
Não são propriedade de ninguém, não tem preço, qualquer dano aos comuns é abuso inaceitável.
Como proprietária da cidade a população tem direito de exigir infraestrutura, e recusar o insustentável adensamento populacional, útil apenas à fortuna de pouquíssima gente.
A população quer esgotamento sanitário público, não esgoto ‘tratado’ por negociatas imobiliárias, de maneira deficiente e não fiscalizável.
Quer que não falte água potável nas moradias atuais.
Quer sol nas casas e pátios, não sombra e mofo causados por grandes edifícios.
Quer mobilidade urbana em suas ruas estreitas, não milhares de carros a mais paralisando o trânsito. Quer ciclovias e calçadas largas, não autopistas.
Quer viver no bairro, não lucrar com ele. Por isto não aceita a gentrificação, a expulsão das pessoas de menor renda e do comércio popular para elitizar as praias.
A fábula de Esopo sobre a cobiça que mata a galinha dos ovos de ouro ultrapassa o universo das histórias infantis. Eis um trecho: “para mim o que me faz falta é a luz do dia, ter o que comer e uma casa quentinha onde posso dormir descansado.
Além disso, preciso ter saúde e ser forte para poder caminhar e apreciar tudo o que me rodeia. E como tenho tudo isso, sou muito rico e feliz!”
Seu sentido existencial e moral é lembrar o essencial na vida, e prevenir contra a ganância que não hesita em matar para enriquecer, como ao jogar esgoto no mar.
Basta de especulação imobiliária: Verticalização, não!
Do contrário, quando crianças forem à praia fazer castelos de areia, será esgoto que terão nas mãos, nos cabelos, na boca…
*Jordan Michel-Muniz é ativista social, mestre e doutor em filosofia pela UFSC, e pesquisa temas ligados à geopolítica, democracia e injustiças
*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.